7 de mai. de 2011

A VOLTA DOS CIGANOS


A VOLTA DOS CIGANOS


E O EFEITO DAS REENCARNAÇÕES



TIA NEIVA


        
Surgiam os primeiros raios do Sol, prometendo, assim, uma primavera festiva naquele pequeno povoado de Provincur, do conde Rafael, jovem viúvo e herdeiro que gozava de todos os requintes da corte russa. Tudo prometia aquele belo dia de Sol! Todos queriam ser acariciados por ele. Foi, então, que me despertou, também, aquela alegria. Ó, meu Deus! Começo a me lembrar, como se fosse hoje!... Lembro-me bem, sim...

         Estava ali, naquela pequena praça, uma linda cigana que cantava, dançando em sua graça, ricamente vestida. “Que quadro original!” – pensei. Chegando-me mais para perto, pude melhor observar. Alguém, que acabara de chegar, foi me explicando com detalhes: “É um magnífico casal de ciganos. É, também, filho deles, aquele pequenino cigano”.

         Fui misteriosamente atraída por aquele quadro diferente e, absorta em meus pensamentos, não reparei que já estava bem tarde para atender às exigências do meu patrão – o conde Rafael -, pois eu era a governanta do castelo.

         Segui para casa e já estava nos meus afazeres domésticos quando entrou o meu estimado patrão, trazendo em seu semblante um desespero de dor. Fui ao seu encontro e, com a familiaridade que tínhamos, perguntei:

         - Que se passa contigo, meu filho? Diga, meu bom menino!

         - Ó, minha boa Antera! Sempre fostes compreensiva e sincera. Diga-me o que devo fazer agora, após minha triste atitude.

         - Meu filho! Que fizestes?

         - Sim, foi horrível! Encontrei-me com uma bela cigana, a seduzi e a induzi a seguir-me. Ó, meu Deus! Como pude ser tão cruel? Arranquei-a de Augusto, seu esposo, e mandei que a trouxessem com o seu pequenino rebento. Ó, minha querida Antera! Se pudesse remediar o mal que cometi... Deve haver uma força maior, pois como se justifica este impulso, fazendo-me cometer tão monstruoso ato? Diga-me alguma coisa, bondosa Antera.

         Fiquei parada ali, sem nada dizer, enquanto mil coisas passavam pelo meu pensamento. Ora veja! Como pode, meu Deus, uma cigana viver agora entre nós? E qual seria o fim de tudo isso? Afinal, indaguei:

- Onde está esta cigana?

         Era verdade! Ali estavam a cigana e seu filhinho, de uns três anos, aproximadamente.

         - Seja bem vinda a esta casa, linda cigana! – disse eu – Sou a governante deste castelo, para lhe servir no que desejar.

         - Oh, - disse ela – como sois boa, senhora... Porém, sou uma pobre cigana que pretende servir e não ser servida!

         - Verdade? Então nos serviremos mutuamente! – disse, para arrematar.

         Foi então que a criança começou a chorar.

         - Deve estar com fome. – retruquei, saindo para preparar qualquer coisa para o menino.

         - Chama-se Yatan – disse a mãe – e desde já o entrego, boa senhora. Eduque-o nos seus costumes!

         Misericórdia! – quase gritei de medo, pois as características do pequeno cigano nada ofereciam de bom.

         Passados alguns dias após a chegada de Andaluza – a cigana – no castelo, houve a celebração das bodas do conde Rafael com a encantadora cigana. Tudo voltava ao seu ritmo normal. A bondade e humildade daquela cigana deslumbravam a todos que a conheciam. O lindo casal demonstrava verdadeira felicidade.

         Certa vez, voltando de um dos meus passeios costumeiros com o pequenino Yatan, deparei-me com Andaluza em frente ao quadro da minha falecida patroa. A princípio, pensei que estivesse admirando aquele quadro de tão rico valor. Porém, logo percebi que chorava silenciosamente. A sala era ampla e, de onde estávamos, podíamos permanecer ser sermos vistos. Olhando para mim, o menino disse:

         - Antera, não faças ruído para não assustar mamãe. Ela se lastima do lobo que comeu papai... Sabe, Antera, quando eu crescer e for um homem, matarei todos os lobos, até encontrar o papai!

         Andaluza virou-se para nós, com os olhos rasos d’água e um ligeiro sorriso de amargor. Era verdadeiramente linda! Seus cabelos, em mechas douradas, destacavam aquele rosto oval. Um par de olhos verdes, caprichosamente rasgados... Seus lábios entreabertos exibiam um verdadeiro colar de pérolas do mais rico valor. Ela ouvira aquele diálogo de seu filho comigo, porque veio ao nosso encontro e, pondo-o no colo, disse:

         - Pobre filhinho! Venha, minha querida Antera, venha! Quero que saibas tudo o que se passou comigo e os meus.

         Arrastou-me para um pequeno sofá, perto da lareira, onde deixou cair seu esbelto corpo e, com a linda cabeça dourada no meu colo, cerrou os olhos e começou a contar:

         - Querida Antera!... Era uma vez uma infeliz tribo de ciganos que tinha como rei um jovem por nome Augusto.

         Ela fez uma pausa, continuando com os olhos semicerrados, como se estivesse sentindo a presença do conde Rafael, que acabara de chegar, tomando lugar em uma cadeira à nossa frente.

         - Sim, minha filha!... Sei que nos faz bem este segredo de tua formação. Desabafas, que melhor guiarás teus próprios passos.

         - Augusto chamava-se ele, o nosso rei. Tinha eu quatorze anos quando uma velha profetisa disse à minha mãe que eu haveria de me casar com um rei de nossa tribo porque, do contrário, não seria feliz. Guardei comigo aquela doce revelação. Certo dia, quis o destino envolver-me em suas gaiolas. Morreu o nosso velho rei, deixando dois filhos gêmeos à disputa de seu trono. Era Brás e Augusto, um dos quais teria que ser nosso rei que, por sua vez, me desposaria. Houve, então, uma grande disputa. Brás ganhou com todas as pompas. Que feliz seria sendo esposa de Brás! Ó, meu Deus! Em meu pequeno coração já palpitava o seu amor. No entanto, todos ali temiam que Augusto não aceitasse a derrota. Porém, em minha inocência, não pensava senão no meu amor. Até que o mau dia chegou!... Já era bem tarde da noite e começavam os primeiros sinais do outono, quando uma forte discussão se ouviu lá fora. Saí de minha barraca para ver o que se passava. Lá estavam Brás e Augusto em forte pegada. Após discussão, chegaram a um acordo: Augusto partiria com alguns ciganos ambulantes e deixaria Brás com o seu povo. Assim, deveria estar tudo resolvido – pensei. Qual não foi o meu desgosto ao despertar-me no outro dia e me ver nas garras de Augusto. Raptou-me altas horas da noite, sem que eu houvesse sentido. Destino!... Cruel destino! E, sem tempo para me refazer daquele susto, foram celebradas as bodas nupciais, minha e de Augusto. Tudo estava terminado para mim, até que, certo dia, Augusto destinou-se para este lugar. Era, realmente, imprevisível aquele homem! De nada valendo nossos conselhos e nem, tampouco, as premonições dos sábios profetas, tivemos que fazer este triste trajeto, em respeito ao nosso caprichoso rei. Como foi horrível! Quando já estávamos na metade do caminho, começou a nevar. Ficamos no mais terrível oceano de gelo. Como fazer? Os nossos aquecedores ficaram imprestáveis e a caça era muito perigosa. Prefiro não descrever os dias de tortura que passamos, aprisionados em nossas barracas. Augusto escondia o alimento e servia ração para a tribo. Aquele sofrimento coletivo durou muito tempo. Até que, uma noite, fomos surpreendidos por forte tormenta. Não tivemos tempo nem para raciocinar no que estava acontecendo. O vento soprava, arrancando as barracas dos lugares, deixando-nos desesperados. Ó, Santo Deus! Sem que pudéssemos nos refazer nem socorrer nossos irmãos feridos, famintos animais investiram contra nós. Foi uma verdadeira luta da vida contra a morte! Ó, Virgem Santa! Atrás de uma barrica que havia rolado, fui testemunha ocular daquele triste cenário. Sim, triste, muito triste! As feras lançavam-se contra aqueles desafortunados ciganos, não lhes dando tempo para qualquer defesa. Eram lobos, eu vi! Fui testemunha e haveria de estar registrada, para a eternidade, aquela cena terrível! Ó, meu Deus! Até agora me parece ouvir os uivos daqueles animais, que fugiram levando suas vítimas na imensidão daquela trágica noite. É verdade! Não havia dúvida! Estava ali – não havia sonhado!... Corri os olhos ao redor e, desolada, vi que tudo havia sido destruído e que só restavam eu e Augusto – narrava a cigana, como se estivesse vivendo outra vez aquele drama tão triste e até então desconhecido para mim e para o conde Rafael e, sem que pudéssemos interrompê-la, continuou: - Ah, foi horrível! E muito rápido, antes de voltar ao meu estado normal, senti uma forte dor na cabeça, com uma sensação estranha. Ouvi um chamado rouco: “Andaluza!... Andaluza!...” Em seguida, quis responder, mas minha voz não saía. Estava petrificada. O único sinal de vida era aquela dor de cabeça. Ali adormeci. Acordei com os gritos de Augusto. Já não me chamava mais, gritava como um louco. Corri para perto dele e, tropeçando em alguma coisa, abaixei-me para ver. Ó, meu Deus! Eram os restos físicos de Calassa, minha querida protetora. Quantas vezes ela enfrentara as chibatadas que Augusto me lançara... Ela as enfrentava por amor a mim!... E ali estava eu, com meu triste destino! Infelizmente era verdadeiro, eu não estava sonhando! Não sei por quanto tempo permanecemos ali, abraçados, com medo de olhar ao redor. Após algum tempo, ele balbuciou: “Luza querida, que nos resta fazer?” “Esperarmos a nossa vez!” – respondi, pressentindo novas desgraças. Passamos dois dias dentro do barracão que havia ficado de pé. Augusto, desesperado, pagava o preço da sua perversidade. Nada nos restava senão esperar o nosso triste fim. Odiava Augusto com toda a força do meu coração! Não suportando mais aquela terrível espera, resolvi, então, matar Augusto e a mim. Depois de livre, meu espírito correria até encontrar minha querida Calassa! Apalpei o punhal que trazia no seio. Augusto dormia com pesadelos, gemendo e se virando, de vez em quando, de um lado para o outro. Será agora! – pensei, empunhando com toda força o meu pequeno punhal. Augusto acalmara-se e, com sua camisa desabotoada, exibia no peito forte o medalhão emblema da saudosa tribo dos Katshimoshy. Comecei a fitá-lo, como se meus olhos estivessem presos àquela jóia tradicional Katshimoshy. O que estava acontecendo? O que aconteceria quando soubessem do trágico fim de Augusto e de seu povo? Meu Deus! Não ficaria ninguém que pudesse contar esta triste história, porque nós também estaríamos mortos! Ia me matar e, em seguida, correria em busca de minha querida Calassa... Augusto parecia desafiar-me, respirando profundamente. Levantei o braço, decidida a sangrá-lo, quando ouvi uma voz familiar: “Luza, minha filha, pelo amor de Deus! Como o desespero te fez cruel! Não tens respeito às relíquias dos profetas Katshimoshy? Não temes os seus encantos? Minha filha, bem perto daqui habitam pequenos seres selvagens que poderão ser dominados. És loura e bonita. Eu te preparei com os encantos dos Katshimoshy. Augusto não precisa mais destes encantos, pois já os tem!” Olhei em seu peito, onde reluzia o encanto do emblema. Respondi, afinal: “Oh, como gostaria de estar delirando nesse momento!” “Não estás delirando! - disse Calassa – aqui estou em espírito e verdade. Não crês nas manifestações dos espíritos e nas revelações dos profetas? Pois bem, eu te darei uma prova. Desapareceu após dizer tudo isso. E eu, como de estivesse sonhando, despertei, agora sem o mínimo desejo de matar aquele que seria, em breve, o pai de meu filho. Debrucei-me sobre o seu peito e chorei amargamente por longo tempo. Augusto, sem de nada desconfiar, acordou e começou a acariciar-me. Comecei a perceber, então, os fenômenos de Calassa, que haviam me transformado a ponto de corresponder àquele gesto de carinho. Augusto apertava-me contra o seu peito forte e, pela primeira vez, aceitei-o sentindo ternura. Calassa, sempre boa, mostrando sempre os bons caminhos, apesar de desencarnada, continuava nos ajudando a enfrentar tão terrível destino. Depois deste confortador encontro com Calassa senti uma enorme vontade de viver. Certo dia, Augusto resolveu sair por aqueles arredores, deixando-me na barraca. Ocupava-me dos meus poucos afazeres quando gritos estranhos sobressaltaram-me. Vi pequenos homens selvagens que se arremessavam contra a entrada de minha infeliz casa. Senti, naquele instante, uma força suprema percorrer todo o meu corpo, como se nada devesse temer daqueles pequenos seres. Abri a porta e, na soleira, esperei, desafiando aquela pequena tribo. Na medida em que se aproximavam, pensei mil coisas. Pensava em Calassa... Pensava em que havia chegado a minha feliz hora... Sim, feliz porque a esperava como libertação para o meu espírito! Olhei ao longe e vi Augusto que, atraído pelos gritos, corria em nossa direção. Porém, os pequenos homens me cercaram e um deles ordenou que me pegassem. Não reagi, nem tampouco manifestei desejos de levar algum objeto de minha barraca. Ao contrário, desejava esquecer tudo, esquecer o meu passado e me entregar à sorte do meu infeliz destino que, a partir daquele instante, estaria entregue à providência divina. Os pequenos homens continuavam a gritar, porém não me assustavam. Não mais sentia por eles o menor temor. Ao longe, avistava Augusto que corria, alucinado, tentando alcançar-me. A certeza de que ele não nos alcançaria trazia-me uma sensação de paz. Os homens caminhavam quase correndo. Já havíamos percorrido um grande trecho quando fomos envolvidos por uma terrível tormenta. O vento era arrasador, fazendo-nos sentir medo. Desabamentos, vales, tudo parecia impedir a nossa caminhada. Porém, os pequenos homens mostravam sua grande habilidade e conhecimentos naquelas zonas tempestuosas. Senti um enorme cansaço e, de repente, minha cabeça começou a rodar. Parei e caí, sem sentidos. Quando despertei, estava recostada numa pequena cama, que mal me cabia, rodeada por várias mulheres. Umas pegavam nos meus cabelos, outras mediam suas mãos com as minhas, examinando-me como se eu fosse algo raro, desconhecido, pois, fisicamente, perto delas eu era muito grande. Observei, também, que só eram amáveis quando eu sorria. Ofereceram-me peixes, pois era um das suas alimentações básicas. Devido àquela curiosidade que nós sabemos ser inerente ao ser humano, fui muito visitada por todos da aldeia. Apesar de ser um povo selvagem, com hábitos primitivos, eram agradáveis e simpáticos. Oito dias, mais ou menos, haviam-se passado quando, na entrada da aldeia, os pequenos guerreiros anunciaram a chegada de um estranho. Fiquei lívida! Só podia ser Augusto... Corri para fora e acenei, fazendo-me entender que aquele estrangeiro era meu marido. Os homenzinhos deixaram-no entrar. Foi fácil para Augusto entender-se com aqueles homens. Contou toda a nossa história – a seu modo, é claro. Mostrou o emblema dos reis dos Katshimoshy e eles também fizeram a apresentação de seus costumes. Viviam principalmente da caça e eram conhecidos como Lapões. Vivemos ali por dois longos anos, mais ou menos. Nos adoravam muito, inclusive a meu filho, Yatan, que nasceu naquela longínqua tribo. Ó, meu Deus! O fenômeno de Calassa, o grande fenômeno, faz-me feliz depois de tantas desgraças! Partimos dali, eu, Augusto e meu filho. Lindas peles trocamos nos mercados por agasalhos e moedas. Sofremos muito no longo e penoso trajeto até aqui. Uma noite, antes de entrarmos nesta província, fui surpreendida novamente por Calassa. Sonhei que ela me dizia: “Luza, chegarás amanhã à província de um conde viúvo que te desposará com as leis da corte. Amanhã, os primeiros raios de Sol anunciarão a primavera, para o começo de tua liberdade. Cante, exibindo a tua graça. Adeus, minha Luza querida!” Mesmo em sonho, quis tocá-la, para impedir que se fosse. Porém, foi em vão a minha intenção, pois logo ela desapareceu diante dos meus olhos. Chorei copiosamente e, logo que o dia amanheceu, contei a Augusto o meu triste sonho. Qual não foi minha surpresa! Augusto sorriu, dizendo: “Veja só! Se isso fosse verdade eu não sei como agradeceria àquela víbora da Calassa em ver-me livre de você! Seria um prêmio, e eu não mereço tanto, por Deus!...” “Oh! – gritei – Chega! Calassa não é víbora! Minha querida Calassa, vítima de tua teimosia ignorante...” Augusto dava gargalhadas que me assustavam. Foi então que me dei conta da profecia de Calassa.
         Depois de contar toda a sua história, a bela cigana levantou-se, espreguiçando seu esbelto corpo, balançou sua linda cabeleira loura e disse:

         - É tudo o que fui e o que sou!

         Rafael também se levantou e, segurando-a pela cintura, beijou-lhe a testa. Depois, chamou um criado, ordenando-lhe que trouxesse o brasão da família. Vi quando o conde pegou aquela preciosa jóia e colocou-a aos pés de sua esposa cigana. Qual não foi a nossa surpresa! A cigana segurou aquele rico estojo e, com os olhos rasos d’água, devolveu-o ao conde, dizendo que a uma cigana não eram permitidos luxos daquela natureza. Se ela o aceitasse, estaria violando as tradições daquela nobreza, que ela havia sido colhida do lodo e que o amava em agradecimento àquela paz adquirida. Por isso, não pretendia desonrar o que de mais puro existia naquela nobreza e viveria como uma cigana, respeitando as tradições dos Katshimoshy, pois, do contrário, Calassa não mais traria para ela as bênçãos de Deus, pois Calassa sabia de tudo...

         Rafael sorriu, admirando aquela humildade. Porém, pude observar que Yatan fixara os olhos no estojo. Naquele instante, devido à sua expressão, percebi bem os pensamentos que povoavam aquela cabecinha. Não podíamos esquecer que a criança era um cigano, com todas as forças do seu sangue. Depois destes esclarecimentos, nos parecia vivermos melhor, mesmo notando a aproximação de ciganos nas imediações do castelo. Lembro-me que, por várias vezes, retirei o menino do quarto onde era guardado o brasão.

         Andaluza já estava calma e parecia feliz. Se tudo corresse bem, dentro de três meses daria à luz uma criança. Rafael, muito feliz, esperava a chegada do filho, que seria seu primogênito. Porém, o nosso infeliz destino já estava ligado à inditosa cigana! O tempo corria, e Yatan cada vez ficava pior, mal educado, e, por muitas vezes, desaparecia sem dar satisfação a ninguém e, depois de muito tempo, chegava, contando coisas que não dava para acreditar.

         Certa manhã, foi encontrado um cigano no pátio do castelo, um jovem cigano agonizante. Os criados corriam de um lado para outro, procurando socorrê-lo, quando um grito agudo assustou-nos. Era Luza, que dava mais uma prova de seu imortal apego aos seus antecedentes. Ela correu em sua direção, curvando-se com carinho, procurando reanimar aquele corpo quase sem vida, enquanto dizia:

         - Meu pobre irmão Nardo! Nardo, como chegaste até aqui? O que foi feito do nosso querido povo?

         - Venho falar contigo! – balbuciou o pobre rapaz – Venho do Brás... Brás, o nosso rei, pede que chegues até lá porque maus agouros pairam sobre tua cabeça. Não demore, Luza!

         A cigana, meio confusa, pediu que os criados saíssem dali e, quando ia me retirar, ela me deteve, dizendo que eu era sua segunda pessoa. Cuidamos do cigano, fazendo com que ele se restabelecesse. E foi com grande surpresa e desespero que os vi tramando o momento daquela trágica fuga. Ó, meu Deus! Como sofri quando a cigana, com seus olhos tristes, me disse:

         - Antera querida, tenho que partir para ouvir os conselhos dos profetas, as suas santas ordens. Serei amaldiçoada se não for eu mesma ao grande batismo! Vê, querida, eu não tenho a proteção dos Katshimoshy – e mostrando o grande escudo no peito do jovem cigano, repetia: - Eu não tenho, como não terei, também, a proteção de Calassa e do meu rei!

Não sei como tive forças para lhe dizer:

- Minha senhora querida, esta jóia é uma superstição dos ciganos. Já não ficaria bem usá-la, por conseguinte. Sei que é bastante prudente para não fazer semelhante viagem, deixando seu apaixonado esposo, quem tanto sacrificou a sociedade de seu condado. E em que posição a senhora me deixará com meu pobre patrão?...

- Antera, – disse-me ela – jamais praticarei atos que possam vir a desabonar este condado, bem como também não deixarei, em hipótese alguma, de atender ao chamado do meu rei. Se Rafael me ama, compreenderá a minha tradicional alma cigana e tu, Antera, darás as desculpas que te convierem.

         E, com a rapidez de um sonho, dirigiu-se à estrebaria com o jovem cigano, partindo em seguida. Fiquei parada, não sei por quanto tempo, pensando em como iria reagir meu pobre patrão. Sim, foi tudo muito rápido! E qual não foi minha surpresa: logo que me refiz, fui dar a triste notícia ao conde, meu patrão, que, com um triste sorriso, me disse:

         - Querida Antera, esta tua notícia não me surpreende. Estamos em um mundo de provações, para nossa evolução. Devemos dar graças a Deus por nos corrigir sempre que erramos, e sinto que fui corrigido por não ter respeitado as normas dos ciganos e ter feito Andaluza minha esposa, o que, naturalmente, lhe foi doloroso, por desrespeitar as leis de sua crença cigana, pois, afinal de contas, fora celebrada suas bodas com Augusto, entre os encantos de suas pitonisas e de fantásticos rituais. No entanto, a pobrezinha não se rebelou e, muito pelo contrário, vem nos cativando com sua humildade e amor!... – e fazendo mais esta observação, o conde Rafael continuou: - Vê, Antera? Nem mesmo o brasão ela desejou tocar!

         O brasão! Onde estará? Eu não o tenho visto no seu respectivo lugar. Meu Deus! O conde, notando minha palidez, perguntou:

         - Antera, o que tens? Escondes de mim alguma coisa mais?

         - Não, – respondi – é que estou cansada!... Devo descansar um pouco, se me permite.

         - Vá, minha boa Antera, seria egoísmo meu segurá-la agora. – e arrematou – Além do mais, e como já disse, não mereço ser consolado se estou a pagar um delito que provoquei sem raciocinar, talvez.

         Passaram-se mais ou menos quinze dias desde que a cigana havia partido. Tudo era tristeza. Repartia bem os meus tempos disponíveis, procurando distrair meu pobre patrão que, sem reclamar, sofria sua grande dor. Todas as tentativas que fazíamos nas pegadas dos ciganos foram totalmente perdidas. Ninguém dava notícias, ninguém sabia de seu paradeiro. A cada dia mais tristes ficávamos, já sem esperanças. Um dia, da sacada do castelo onde estávamos, avistei o pequeno Yatan que, montado em fogoso cavalo a galope, vinha em nossa direção. O conde Rafael se levantou e, juntos, nos precipitamos, prevendo a grande desgraça que nossos olhos presenciariam: num segundo, sem nos dar tempo de nada fazer, o cavalo perdeu o equilíbrio e jogou o pequeno ao solo, desacordado, com uma fratura na cabeça e perdendo uma quantidade incalculável de sangue. Peguei, sem perca de tempo, o pequeno em meus braços e pedi que providenciassem um médico. Fazia compaixão o estado de abatimento do conde. Ele não se afastava da cabeceira do pequeno enfermo.  Após uns três dias, o menino começou a falar, chamando pela mãe. Às vezes, emitia palavras desconexas, nos preocupando, cada vez mais, o seu estado de saúde. E por mais que procurássemos agradá-lo, mais parecia nos odiar! Já bem tarde da noite, deixei o quarto do enfermo para ir descansar e ao passar diante do quarto de minha fugitiva patroa, escutei um gemido. E qual não foi o meu pavor! Fiquei petrificada por alguns segundos e como aumentava de intensidade, voltei correndo para junto de meu patrão, explicando-lhe o que ouvira. Alarmado com o ocorrido, disse não ter coragem de ir lá sozinho, e mandou chamar Kazu, uma jovem servidora, dizendo-lhe que permanecesse no quarto, junto ao pequeno enfermo, sem descuidar-se um só minuto de sua vigilância. Kazu era uma criatura muito temperamental, que vivia a salientar-se por todos os cantos do castelo, muito preguiçosa, porém, apesar de suas características indesejáveis, nunca a havíamos identificado como ladra.

         Saímos para verificar os gemidos e qual não foi o nosso espanto: encontramos a cigana em estado cataléptico e, ao seu lado, uma linda criança recém-nascida. Não tivemos tempo a perder, e, esquecendo de tudo, providenciamos um médico, bem como uma ama para a pequena prematura. O dia havia amanhecido quando deixei o meu patrão recebendo algumas explicações da cigana que, com palavras firmes, vivia o seu enredo:

         - Querido Rafael, somos descendentes dos nômades e sob o poder do espírito imortal dos Katshimoshy, juramos colocar nas fogueiras as nossas oferendas. Por conseguinte, para qualquer um que tenha, conscientemente, se incorporado neste ritual cabalístico, este juramento é considerado o elo de uma corrente salvadora, poderosa e imortal. Compreenda, Rafael, eu sou um elo dessa corrente. Jamais te farei infeliz! Amo-te, e não desejo viver longe deste castelo. Cumpri minha penosa missão. Perdoa-me, por piedade! A minha pobre mãezinha desejava me ver.

         - Por que não me pediu que a levasse? – perguntou o conde.

         - Ah, - respondeu a cigana – para não te deixar em dificuldades. O povo de Brás estava preste a arrancar-me daqui. Não sabes a intriga que fez Augusto, procurando, com isso, desculpar-se pela grande desgraça de suas ações. Foi por isso que tive que correr para impedir outra armadilha do infeliz Augusto. Ah! Se soubesses como te amo e como me foi doloroso este meu comportamento! Encontrei minha pobre mãe muito mal. Etelvina, a profetisa oficial da tribo, profetizou os mais terríveis acontecimentos, e tudo sobre mim. Disse que tu, meu querido Rafael, com toda tua indulgência para comigo, chegarias um dia a acusar-me da mais vil calúnia e, como ladra, atirar-me-ia nas ruas, exigindo que eu voltasse à tribo, onde eu morreria de saudades tuas! – e, após dizer isso, desatou em soluços, como que amargurada por uma louca e desabalada desilusão.

         - Ó, minha querida! Como pude duvidar de ti? Como se atreve essa profetisa? Que mal fiz a ela para me ver tão vil, tão avarento, a ponto de caluniar-te como ladra de teu próprio tesouro? Sim, minha querida, és minha verdadeira herdeira de tudo quanto possuo. – e sorrindo para a recém-nascida – Agora tudo será repartido com minha segunda sócia, não é mesmo, querida? Vá, não pense mais nessas tolices.

         - Ah, se me fosse possível esquecer... – disse a cigana – Sinto que nossos espíritos imortais comprometeram-se no passado e um grande débito eu terei que te pagar antes de fugir daqui, novamente, para novos mundos...

         - Feito! Cobrar-te-ei em dobro. Sinto que me deves um profundo amor, e exijo ser pago! Quanto à tua partida, aconselho-te a levar-me contigo. Pelas tuas concepções ou formação religiosa, vejo que tens mais facilidades com estes transportes... – e sempre gracejando, o conde rematou – Nunca vi tanta coragem! Quando estiveres melhor, desejo que me ensines esta doce filosofia...  Se Olga, minha usurária irmã, souber de tais profecias, irá imediatamente aos pés dessa cigana profetisa.

         - Oh! – gritou a cigana, chegando a assustar o conde – Olga? Olga? Etelvina falou-me de uma Olga.

         - Sim, - falou o conde - Olga, minha irmã. Minha mãe a encontrou à beira de um lago. Era filha de um zelador da pequena mansão dos X, que morreram. Uma fatalidade do seu destino! Foi então que meu irmãozinho Hildebrando foi salvo por ela naquele lago. Minha mãe a fez nossa irmã. Olga, que sempre foi insatisfeita, apaixonou-se por mim a ponto de nós julgarmos que a morte da mamãe foi provocada por este grande desgosto! Olga fez todos sofrerem quando me comprometi com Matusca, que morreu há dois anos, deixando-me viúvo e sem sequer um filho que, afinal, eu tivesse como recordação do nosso casamento. Dizem as pessoas supersticiosas que Olga se influenciava com feiticeiros e pitonisas para destruir a mim e Matusca. Oxalá que os feiticeiros tivessem tanta influência nos destinos ou desígnios de Deus! Veja, minha querida, se eu assim acreditasse em tamanho desafio, mandaria juntar todos os feiticeiros e pitonisas em uma tenda, fazendo o mais poderoso mecanismo, e, depois, ordenaria que fizessem com que o coração de minha linda esposa cigana fosse purificado de qualquer superstição, principalmente a respeito do espírito imortal!

         - Vejo, meu marido, que te falta compreensão dos fatos que vêm ocorrendo dia a dia! Porém, já que me pedistes aulas de filosofia, não tardarei em dar o diploma ao meu conde marido. Oxalá não seja um diploma de feiticeiro. Sim, também tenho tarimba...

         Os dois riram. Vendo a compreensão daqueles dois, agradeci a Deus e fui dormir um pouco. Apesar do acidente com o pequeno Yatan, tudo correu em paz até o dia da festa de São Petersburgo. Começaram os grandes preparativos. O Imperador mandou que fossem abertos os portões para os estrangeiros e nômades. Enfim, só se ouvia o tinir de guizos e passos de animais nas ruas. Fogueiras enormes, danças e algazarras... Porém, para mim e para o meu patrão Rafael não havia alegria. Pelo contrário, sentíamo-nos em perigo, porque os ciganos, com seus enormes cavalos enfeitados de fitas, pareciam desafiar até mesmo a própria natureza. E, para nosso maior receio, os ciganos que mais se realçavam eram os da tribo de Andaluza que, em seus cavalos fogosos, mais pareciam príncipes encantados das antigas lendas. Foi então que o nosso mau presságio se confirmou. Estávamos tomando chá, mais ou menos às duas horas da tarde, quando Kazu veio anunciar a chegada de duas formosas ciganas – que, depois vim a saber, serem Etelvina e Zaida. Etelvina, a profetisa da tribo dos Katshimoshy, era verdadeiramente simpática. Andaluza mandou que entrassem e, sem nenhum embaraço, nos apresentou. O conde Rafael e eu fizemos tudo para nos tornarmos melhores hospitaleiros. Zaida, sempre abraçada a Andaluza, disse que, naquela noite, iria cantar para o Imperador, no pátio do grande palácio, e assim dizendo começou a cantar e a dançar, com todos os encantos dos seus dezoito anos. Andaluza não resistiu à tentação, e acompanhou-a naquela dança no amplo salão, formando a mais linda dupla. Rafael ficou tão emocionado que franqueou o castelo não apenas àquelas ciganas mas, também, ao outros que estivessem com elas. Tudo correu bem até que, à noite, voltassem da grande festa. Só eu havia ficado, tomando conta das crianças. Entretida com a pequena herdeira, não reparei que o pequeno Yatan havia desaparecido. Chamei a criadagem e um jovem, por nome Tucem, disse que havia visto o pequeno Yatan em companhia de Kazu que, seduzida por um jovem cigano, havia dito que só voltariam no outro dia, pois pretendia passarem a noite com seu amor cigano. O conde Rafael, que estava ainda cheio de euforia da magnífica noitada com as ciganas na casa do Imperador, pouca importância deu ao desaparecimento do menino. Logo depois, reunindo no salão as convidadas, pediu-me que fosse até o cofre e trouxesse o brasão, pois desejava mostrar às ciganas a rica jóia que sua querida esposa havia rejeitado. Ó, meu Deus! Que horror! Lembro-me como se fosse hoje: quando abri o cofre o maldito brasão não estava lá... Foi um verdadeiro alarme. Os criados garantiram não ter ninguém entrado no castelo e todos insinuavam ter sido Kazu, pois a viram fugir com embrulhos grandes nos braços. O conde Rafael, terrivelmente agitado, gritava, dando ordens que trouxessem Kazu, de qualquer forma, ao castelo. A pobre Andaluza, abatida, levantava-se algumas vezes, falando ao esposo palavras de conformação. Os cavaleiros iam e voltavam sem qualquer notícia da servidora Kazu. Com muito carinho, Andaluza conseguiu que seu esposo se recolhesse a seus aposentos. O dia já amanhecia e as três ciganas pareciam mais tristes, como que prevendo a total desgraça profetizada para nós.

         - Etelvina, vê onde se encontra esta rica jóia. – disse Zaida.

         Etelvina sacudiu todo o seu corpo. Disse coisas desconexas para mim. Depois, como se passasse por um processo seu habitual, disse:

         - Luza querida, as forças estão se afastando de ti! Yatan, o teu filho, neste instante coloca sobre Augusto esta jóia, que é o brasão, instrumento de terríveis desgraças...

         - Meu filho! Meu filhinho de apenas cinco anos de idade?...

         - Sim! – continuou a profetisa – Augusto vinha induzindo o filho para este nefando roubo.

         A cigana continuava suas tristes revelações enquanto nós outras sentíamos o coração apertar de dor. Depois, com o indicador apontando para mim, disse:

         - Querida Antera, eu sou Calassa, sou o espírito que perdeu seu corpo pelos lobos famintos. Amo-te, Antera, por ver-te tão dedicada à minha desventurada Luza. Não me temas, porque, dentro de pouco tempo, estarás comigo! A desventura paira sobre este castelo. Porém, a justiça e o poder de Deus terão, muito em breve, sua força para a evolução e melhor libertação do espírito de Luza. Luza, antiga cesarina, terá que carregar a cruz simbólica do Cristo para se safar do egoísmo, poder este do sanguinário Império Romano... Adeus! Não me queiram mal... Voltarei muito em breve!... – e como se tivesse cumprido uma séria missão, Etelvina retomou sua posição antiga.

         Corri até a copa e trouxe alguma coisa quente, de que não me lembro mais. Os criados haviam espalhado por toda parte a notícia do desaparecimento do brasão. A condessa Olga, assim que soube da notícia, veio correndo ao castelo. Sua visita indesejada nos fazia mal, principalmente pelo estado de angústia em que nos encontrávamos. As duas ciganas, solidárias a Andaluza, abandonaram as festividades e não se afastaram mais do castelo. A condessa Olga, depois dos cumprimentos habituais, chamou Rafael para um lugar reservado e começou a falar:

         - Oh, meu querido mano!... É triste ver-te em tão lastimável situação. Que tu te casasses com uma nômade, está certo. Enfim, é o teu impensado amor!... Mas, teres em casa toda a tribo? Ah, jamais aceitaria! Isto é indigno de ti... Este povo está te hipnotizando! Não é possível! – e assim dizia, enxugando as lágrimas, como se estivesse realmente desesperada.

         Como conhecia bem a condessa, dirigi-me a ela e disse:

         - Cara condessa, não admito, por hipótese alguma, que a senhora saia do seu castelo e venha aqui nos perturbar. O brasão não te pertence mais e nem tampouco ao conde Rafael. Ele se casou com Andaluza e, neste castelo, quem manda é ela. O brasão pertence a ela por tradição e, para que ele nunca fosse parar em tuas mãos imundas, criminosas, eu o roubei e mandei levá-lo para a tribo dos Katshimoshy! – e como se eu conhecesse os processos de Etelvina, continuei – Criminosa! Com aquela erva daninha exterminastes duas santas criaturas: a pobre indefesa Matusca e a baronesa Yuca, santa criatura que te deu o condado e te livrou da fome e da desgraça. Por último, com medo do teu cúmplice, mandaste surrá-lo e expulsar da cidade. Porém, Deus não esconde por muito tempo as nossas perversidades! Sei onde, todo aleijado, resiste ainda o infeliz Yochim, arrependido de seus crimes, trabalhando ainda hoje pela sua sobrevivência. No entanto, a senhora se armou de suas forças satânicas e veio para destruir a nossa cigana condessa. Não, esta a senhora não destruirá! Aquela cigana que ali está é a herdeira do conde Rafael, tua vítima. Aquela criança é a luz que ilumina este castelo. Somos todos felizes e não precisamos da senhora nem de seus conselhos... – completei e, quando dei conta de tudo, vi que todos estavam tão surpresos que não tinham pernas para saírem de seus lugares.

         - Antera, - disse o conde Rafael – onde conseguistes saber tanto e testemunhar o que acabas de dizer?

         - Sim, meu patrão, perdoa-me por não lhe ter dito a mais tempo pois, quando fiquei sabendo, esta infeliz já havia matado minhas patroinhas queridas!

         - Meu Deus! Não sabes que o brasão pertence a Andaluza? Como se explica esta terrível injustiça? Kazu está amarrada na praça de diversões para ser executada à noite, para pagar por um crime que não cometeu!...

         - Meu Deus! – Andaluza resmungou, em prantos – Meu Deus! A maldição dos espíritos ronda este castelo... Etelvina! Etelvina! Que farei para reparar tudo isso? Enlouquecerei se não tiveres piedade de mim...

         - Não, minha querida! – disse o conde, procurando acalmar a esposa – Nada tens a temer!

         - Rafael, se soubesses a verdade de tudo isto irias me odiar! É tudo tão monstruoso!...

         - Como? – gritou Rafael – Com todos os diabos, estarás aliada com Antera, tramando nossa infelicidade? Esqueces que tu e Antera sois as únicas criaturas que amo? Oh, minha Andaluza querida, vamos, juntos, perdoar o nefando erro de Antera. Pelo amor do grande Deus, te isentes deste roubo. Não é digno de uma condessa!

         Fui ao encontro dela, que me disse, entre soluços:

         - Minha boa Antera, por piedade, tenha pena de mim! Por que te condenastes a ti mesma?

         - Fiz pelo meu patrão, Sinhá, porque sei que se saíres deste castelo ele morrerá! Odeio a condessa Olga.

         Tudo estava tão confuso que ninguém entendia nada, a não ser eu e Etelvina, com sua clarividência. A condessa Olga me descompondo, deixou o castelo. Os ciganos também se foram. Agora, restavam somente nós três, oprimidos pelo terrível acontecimento. O menino desapareceu. Tudo era tristeza. Kazu fora queimada como ladra. Comecei, então, a sentir certas anormalidades. Pensei em queixar-me, para ser vista por um médico. Todavia, os meus sintomas anormais tomavam, com mais freqüência, a minha voz, enquanto uma espessa nebulosa cobria totalmente a minha visão. Tendo uma sensação de leveza, ouvia como que um sussurro, palavras desconexas, como dizendo: “Oh, pobre Antera! Está morta!”. Ouvia, também, a voz querida do meu patrão, que dizia: “Morreu minha Antera, a querida criatura que tanto me compreendia!...” Eu estava desencarnando!

         Compulsoriamente, fui levada pelas forças magnéticas do Astral Superior. Após me submeterem aos processos espirituais – não sei por quanto tempo – voltei à minha visão normal, sentindo agora uma louca e inexplicável saudade da vida cotidiana na Terra. Germano, o meu luminoso Mentor, me explicava a minha futura missão na Terra. Porém, o meu espírito, incompreendido e culpado, não quis esperar pela benevolência das leis e, com a facilidade do meu livre arbítrio, desprezei as cadeias benditas e voltei ao meu atraso nos carreiros terrestres. Era uma bela madrugada quando meu Mentor me trouxe novamente à Terra.

         - Antera, – disse-me – voltarás ao labores terrenos e terás nova oportunidade junto aos teus familiares. Cuidado com o teu padrão vibratório e com os teus julgamentos!

         Aos primeiros raios do Sol, quando avistei os portões do castelo, indizível tristeza se apoderou do meu espírito. Conscientizei-me de que não estava preparada, pois sentia voltarem todos os instintos de vingar-me da condessa Olga e, por mais que me debatesse contra os maus impulsos, era embalde, não conseguia senão aumentá-los! Germano, o meu bom Guia, deu acesso à minha consciência. Estava ali o suntuoso castelo do meu querido patrão. Tive, então, a mais triste surpresa: o conde havia morrido e a cigana, sua esposa, estava desaparecida, sendo, agora, dona de tudo, a condessa Olga! Sim, até que Hildebrando chegasse de outros países, onde estava levando uma vida de boêmia, pois sendo o único irmão do conde Rafael, seria ele o dono de tudo. Assim, estava eu naquele casarão, sem nada o que fazer, apenas me acrisolando na aura da condessa Olga. Quando já me preparava para deixar o castelo, senti que as coisas estavam mudando de sintonia. Repentinamente, comecei a sentir a presença da cigana. Insegura, comecei a invocar o meu Mentor, que não aparecia. Compreendi que meu ódio pela condessa Olga só fizera me embrutecer. Foi então que vi Andaluza caminhando sem destino. Chamei-a e ela, que satisfação, me ouviu. Andaluza disse, tristonha:

         - Querida Antera! Não sabes a desgraça que nos causou o infeliz brasão. Morrestes, deixando-me no mais terrível desespero. Sabias que Yatan, meu filho, o havia roubado. Morreu a infeliz Kazu e Yatan desapareceu. Foi então que, desesperada, corri para o meu bando a buscar o que me diriam os profetas ou Brás. Rafael, sabendo de tudo, saiu com seus guardas e lá me encontraram. Não quis mais voltar. A vergonha era demais. Na verdade, eu queria viver ao lado do meu esposo, mas era a mãe de um ladrão, que podia ser sacrificado na fogueira. Oh, Antera, foi horrível! Rafael saiu dali desesperado, sem me dar tempo para explicar. Depois, ficamos sabendo que ele morrera, mas não foi encontrado o seu corpo.

         - E tu? – perguntei.

         Ela baixou os olhos e, depois, continuou:

         - Fiquei vivendo com os meus, sempre temendo Augusto. Não dançava e nem cantava. Certo dia estava à margem do rio onde Rafael fora visto pela última vez, quando fui puxada por um forte braço e sofri uma pancada em minha cabeça. Fui trazida para aqui, onde estou prisioneira. Disse-me a condessa Olga que meu povo me considera morta, pois encontraram somente minhas vestes. Tudo foi bem planejado!

         - E as profetisas? Por que não contam a verdade?

         - Sim, elas já disseram que estou viva, mas não sabem onde. E eu estou ali, naquele armário!

         - O quê? – gritei – Compreendo! O teu corpo dorme. Meu Deus! O quê poderei fazer por ti, minha querida Luza?

         Enquanto me lamentava, ouvi uma forte pancada. Era Gregória, a governanta, que esmurrava o armário, para acordar Luza, a cigana, que, em um segundo, desapareceu. E quando a porta se abriu, foi horrível: aquele corpo esbelto era, agora, o símbolo da dor, pálido e assustado. No auge do meu desespero, veio Germano, que foi logo me explicando:

         - Antera, se desejas fazer alguma coisa por tua cigana, afasta-te dela! Estes ciganos estão em prova para sua evolução. Vieram do Império dos Césares, de Roma! – e acrescentou – Tu também, bem como todos os descendentes deste castelo. Por que fugistes dos ensinamentos? Por que não te interessastes em aprender as Leis? Nada nos foi possível fazer por causa da tua teimosia. Agora, estás destinada a passar o que der e vier. É verdade que terias que voltar e cumprir o teu carma. Porém, jamais nessas condições...

         Salve Deus! Que esses ensinamentos sejam promissores!

                                               A Mãe em Cristo Jesus,

                                                                  TIA NEIVA

- F I M -

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