7 de mai. de 2011

A HISTORIA DE DITINHO

A HISTÓRIA DE DITINHO

TIA NEIVA

         Salve Deus, meus filhos! A cada dia me apavoram as responsabilidades, mas eu continuo me atirando em minha missão com todo o amor e com toda precisão. Vejam: eu estava cheia de afazeres, como sempre, quando chegou um jovem desencarnado, um homem com precisamente 35 anos, que foi me dizendo:
         - Tia Neiva? Eu estou morto?
         - Sim. Você morreu, claro!
         - Tia, me ajude!...
         Como clarividente sou obrigada a receber e a ouvir os desesperados. Comecei a ouvir:

         - Tudo começou assim: em frente à minha casa havia um barzinho, com freqüência marginalizada, e que, apesar de tudo, eu gostava de freqüentar. Certo dia, saiu uma briga que eu, só hoje, consegui entender. Lembro-me de que havia policiais, cadáveres, hospital e, por fim, quando dei conta de mim, estava leve e já em um outro lugar que não o meu lar. Ah, Tia Neiva, como foi horrível! A partir de então comecei a padecer! Sim, a minha mente sempre foi cheia de tolices, de futilidade. Nunca me apeguei a coisa alguma! E as pessoas que não têm a mente presa a alguma coisa são leves, o que as leva a perambular como eu... Ah, Tia Neiva, mas isso aí não foi o pior! Já estava cansado do nada quando comecei a pensar... Pensei, então, estar sentado e, realmente, me vi em uma pracinha. Comecei a recordar das coisas com maior precisão. Lembrei-me de um certo vigário que sempre me dizia: “Onde vai o pensamento, vai a alma!”. Minha família... o barzinho... a tragédia... O que me acontecera? Por que tão grande transformação? Ninguém me respondia! Há quanto tempo estou aqui? Estarei sonhando? Tudo passava por minha mente, menos que eu tivesse morrido! De repente, comecei a ouvir um discurso e, por algumas frases, reconheci ser religioso, ou melhor, católico, porque me fez lembrar do meu amigo vigário, que me fizera tanto bem. Seria ele? Onde? Como? Comecei a gritar, chamando por padre Juca.
         - Prepare-se para descer à Terra, filho! -  ouvi padre Juca dizer.
         - Não estou na Terra? - perguntei.
         - Não.
         - Para onde irei?
         Sem me responder, o velho vigário continuou, em sua bendita obra. Ah, Tia Neiva, era tudo tão confuso para mim!... Passei a não obedecer a ninguém. A princípio, me empolgava com tudo. Depois, comecei a reparar nos antigos conhecidos, como, por exemplo: estava, certo dia, sentado na tal pracinha, preocupado por não ter mais visto o sol. Não sabia que um sofredor não vê o sol. Cada dia minha visão ficava mais escura. O que mais me entristecia era perder a visão da Luz! Quando ouvi alguém conversando perto de mim, olhei para ver se me era conhecido. Ah, que susto! Era um tal de Zé Campelo que, tenho certeza, estava também naquele bar, no dia fatal. Tive medo, e saí correndo, já disposto a ver se encontrava o vigário, quando ouvi alguém me chamando. Meu Deus! Era uma linda mulher que, com as mãos na cintura, dava risadas. Chamou-me para dentro de uma bonita casa e eu, que procurava abrigo, decidi acompanhá-la. Mas que horror: a mulher tinha pés de pato! Comecei a ter medo. Logo que percebeu que eu olhava seus pés, ela me disse:
         - Você é muito ingênuo!
         Expliquei a ela que minha vida estava cheia de impactos. Ela, então, passou a me dar lições que serviram para que eu visse minha irresponsabilidade. Enquanto ela falava, eu ia ficando triste. Só faltava eu recordar as orações do meu velho protetor...  Tudo me surgia na mente, enquanto ela tagarelava. Por fim, disse que ia me levar à casa de um amigo seu, que nos ofereceria champanhe.
         - Não gosto de champanhe! Gosto é de cachaça... - eu disse.
         Enquanto isso, foi chegando gente que não prestava atenção em mim. Era como se eu fosse um João Ninguém! Comecei a ver aquilo como se fosse um pequeno bar. Súbito, alguém gritou, comemorando uma data, sei lá! Vi, então, que se tratava de uma festa. Pensei em sair sem ser visto e ir procurar a minha cidade. Sentia que aqueles conturbantes estavam ficando perigosos! Fiz uma tentativa, quando alguém gritou:
         - Olhem! Um impostor! Como veio parar aqui?
         - Fui eu quem o convidou a vir até aqui - disse a mulher.
         - Se não tiver padrinho, vou vendê-lo - gritou um homem que, virando-se para mim, perguntou:
         - Você tem algum padrinho?
         Tentei pensar no meu santo vigário, mas a bebida me inibia. Como não tinha para onde ir, pensei que seria melhor ficar ali mesmo. Mas o homem, já aos gritos, repetia sua pergunta.
         - Vamos, vamos! Responda! - falou-me a dona da casa, a pomba-gira de nome Isaura.
         - Não, não tenho padrinho - respondi.
         Foi horrível! Uma mão quente e forte como ferro agarrou-me pelo braço e me jogou no meio daquela roda, ficando todos a me fazerem críticas e deboches. Lembrando as palavras do meu protetor, o vigário, achei que estava no verdadeiro inferno! E como sair? Não sabia... Minha tristeza causava risadas e nunca vi tanta euforia, até que um chicote ressoou, como que vindo do infinito, com um silvo de dar medo! Foi como água na fervura... Senti que era retirado dali, não sei como, e fui para não sei onde! Estava diante de uma casa e já me preparava para nela entrar quando ouvi gritos. Corri para ver o que era e me deparei com uma mulher praguejando, dizendo que o marido havia lhe tomado seus filhos. Aproximei-me da mulher, que praguejava demais, furiosa, e perguntei:
         - Tem alguma devoção?
         - Tenho. Sou espírita!
         - Cruzes! - eu disse - Os espíritas são loucos! Eu sou católico.
         A mulher se acalmou e pareceu estar envergonhada. Baixou a cabeça, dizendo:
         - Eu freqüentava a casa da madrinha X, porém nunca me desenvolvi. Era um lugar onde se fazia muita caridade, porém eu, que sempre fui irresponsável, só queria viver em volta do meu marido!
         - Como se chamava?
         - Teodoro! E com ele tive seis filhos...
         - Onde estão?
         - Há pouco Teodoro passou por aqui e levou todos, não sei para onde...
         - E essas três crianças que estão aí, atrás da senhora?
         - Não sei! Não conheço esses infelizes! Porém, dizem que são meus filhos e me chamam de mãe!
`        Ela, irada, arremessou algo sobre eles, que começaram a correr sem destino, deixando só nos dois. Meu Deus, pensei, passando a mão na minha testa. Pensei em ir embora, mas achei que não podia deixar a mulher sozinha. Lembrei-me do vigário: quantas vezes o vira dando conselhos, conciliando casais...
         - Como foi que tudo aconteceu e a senhora veio parar aqui? - perguntei já impaciente.
         - Não sei como vim parar aqui!
         Vi, então, desesperado, uma avalanche de labaredas de fogo que nos rodeou, mas nos deixou em paz.
         - O que significa isso? - perguntei assustado.
         - Esse é o fogo etérico, - ela me explicou - o fogo que queima as baixas vibrações!
         Entendi que era uma proteção de Deus, que nunca deixa seus filhos, mesmo aqueles que, como nós, estão numa triste situação...
         - Há quanto tempo está perambulando por aqui? - perguntei - Perdeu, como eu, o rumo de casa?
         - Vou lhe contar o que me aconteceu. Eu tinha três filhos, e vivia em paz com meu marido. José, o meu filho mais velho, trabalhava numa oficina e era muito apegado a mim e eu a ele. No dia do meu aniversário, José, na presença de todos, colocou um lindo anel em meu dedo, dizendo:
         - Toma, mãe, é para a senhora!
         Era uma jóia cara. Fiquei emocionada, porém preocupada, pois como aquele jovem poderia ter comprado tão preciosa jóia? À noite sonhei que eu estava numa rica sacada e, olhando minha mão, não vi o anel! Três jovens seguiam à minha frente e, sem reparar quem eram, gritei, e qual não foi minha surpresa: os jovens eram os meus três filhos! No meu sonho, culpei, sem clemência, o meu José pelo desaparecimento do meu anel. Foi tudo horrível, a partir dai. Finalmente, uma criança, muito parecida com José, é quem estava com meu anel. Passei o dia com este sonho me martelando a cabeça e, à noite, fui ao centro espírita, onde me disseram que José viera, nesta encarnação, para se reajustar comigo. Eu continuei a sofrer pelo sonho, como se fosse uma verdade. Imagine se eu teria coragem de acusar o meu José! Resolvida, cheguei a José e lhe perguntei:
         - Meu filho, como conseguiu comprar uma jóia tão cara?
         - Se a senhora soubesse perderia a graça! - respondeu-me ele, sorrindo.
         Sim, porque ele estava se sacrificando para pagá-la. José sabia que eu tinha verdadeiro horror a roubo, que eu era intransigente com essas coisas. Insatisfeita, fui falar com minha vizinha, uma amiga íntima, e qual não foi o meu erro! Ela me contou que havia sido cometido um roubo na oficina em que José trabalhava. Mais tarde, José estava numa pescaria quando dois policiais bateram à minha porta, em busca de esclarecimentos. Fiquei como se o mundo tivesse desabado sobre mim. Mal consegui falar:
         - Meu Deus! Roubo?
         - Sim, - afirmaram os homens - na oficina em que seu filho José trabalha.
         A vizinha, minha confidente, disse quase gritando:
         - Nossa, dona Lia! Coração de mãe não se engana! Bem que a senhora suspeitava de seu filho...
         Baixei a cabeça enquanto a mulher contava aos policiais o caso do anel. Ouvi os passos de José que chegava, e não defendi meu filho! Arranquei o anel do dedo e lhe entreguei. José me olhou com ternura e dor, e me disse:
         - Não, mãe, o anel é seu! Junte algumas roupas para mim. Logo que se apure esse roubo, eu estarei de volta.
         José era o gerente da oficina e, por isso, fora chamado. Não haviam suspeitas dele. Quando fui arrumar suas roupas encontrei as duplicatas do anel, que seria pago a prestações. E eu havia condenado o meu filho! Desesperada, tomei uma dose letal de estricnina, e acordei aqui.
         - Meu Deus! O que vamos fazer? - perguntei.
         Ouvimos, então, uma voz que me era bem familiar. Era o velho vigário que, se aproximando, colocou a mão sobre a cabeça da mulher e disse:
         - Esta confissão te salvará! Teu filho já te perdoou... Vá se encontrar com ele!
         - Onde? - perguntou Lia, dando um suspiro de alívio.
         - No verdadeiro plano dos espíritos.  Como te fez bem esta confissão...
         - Mas eu sou espírita! - disse a mulher vendo o vigário - Além disso, sou uma suicida...
         - Não tem importância. A vontade de Deus não distingue religiões!...
         Foi impressionante aquele momento. Quanta paz, quanta segurança!
         - Vamos! - disse o vigário, segurando a mão de Lia.
         - Eu também quero ir! - gritei - Não me deixe, por favor!...
         Ele me olhou com ternura, dizendo:
         - Esta mulher já pagou pelo seu erro. Nada mais tem a fazer. A presença do seu filho será a sua comunhão.
         - E eu? O que será de mim?
         - Ainda não podes. Desencarnastes dez anos antes do programado. Não era o teu dia. Morrestes pela irresponsabilidade de teu espírito. Ainda terás que esperar aqui por teu pai e por tua mãe. Nada fizestes! Tu te misturastes com os marginais, sem ser marginal. Terás que vagar, ainda, por período igual a cinco anos terrestres! Se souberes te manter, se aprenderes a respeitar os outros, logo sairás deste desespero e seguirás para outro plano.
         - Ó, meu vigário!... Como podes fazer isto comigo? Destes a extrema unção àquela espírita e a mim, que nunca te esqueci, me deixas aqui!
         - Ditinho: tudo o que fizestes por esta mulher, a Lia, vai sempre servir para ti. Duvidastes do amor de Deus, e eu fui instrumento para não mais duvidares. Embora ela seja espírita e eu um representante da Igreja Católica Apostólica Romana, nada tem a nos separar e continuarei com as minhas convicções. Ditinho, estamos num mundo de realidades. As religiões não unem nem separam e, sim, o amor a Deus - o verdadeiro amor no Espírito da Verdade! Sempre te chamei para a Igreja, para que pudesses aprender a caridade, mas não me destes atenção...
         - E onde estou eu agora? - perguntei afinal.
         - No mundo dos espíritos, só que num plano inferior, de mentes atrasadas. Virei sempre que me chamares.
         - É... De fato, quantas vezes me chamastes à razão! Eu não acreditava em ti, somente acreditando em tua bondade. E agora, vais me deixar aqui!...
         Nisto, um forte estampido nos fez mudar de sintonia. Viramo-nos para um lado e vimos três jovens que gritavam, com medo. Nos vimos em uma pracinha como qualquer outra, porém triste como se revelasse o estado da alma dos que ali estavam.
         - Meu Deus! - disse o vigário - Se quiseres te libertar daqui mais depressa, ajuda a conduzir aquelas jovens. Vá saber do que precisam e se aceitam a tua ajuda!
         - Como posso, se eu também tenho medo?
         - É por isso que tanto te atrasastes! Tens medo de lutar! Se sentisses amor por estas pobres jovens irias defendê-las. Oh, pobre Ditinho!
         Senti vergonha do vigário e comecei a ir até às jovens. Vi, preocupado, que o vigário havia desaparecido. Oh, meu Deus! Lembro-me bem do meu desespero! Recordei das tantas vezes, na Terra, que ele havia me alertado e eu o desprezara. Enquanto andava, ia dizendo “Deus, Pai, Espírito Santo!”, palavras que o vigário havia me ensinado. Quando as jovens me viram me aproximando, se encolheram. Eu continuava a falar: “Deus, Pai, Espírito Santo!”. Elas, então, devagar, foram se chegando a mim.
         - De onde vêm? - perguntei.
         - Fomos abandonadas por nossa família! Tivemos um desastre e ficamos irreconhecíveis! A nossa família... ninguém... não! Nada! Não sabemos!...
         - Devem estar igual a mim quando passei para esta dimensão - pensei.
         Enquanto eu pensava, as jovens se acalmavam. Olhei em torno de nós e vi, ao longe, o vigário.
         - Vamos, vamos, me acompanhem! - disse às jovens sem pestanejar.
         Elas me acompanharam e chegamos a uma grande casa. O vigário, novamente, desapareceu. Aí entendi que ele nos havia guiado para aquela casa enorme. Entramos e, em seu interior, havia muitas pessoas fazendo diversas coisas. Fiquei naquela sala, sem saber se saía ou ficava, até que surgiu uma senhora muito simpática, vestida como se estivesse na Idade Média, que veio, com muita graça, até nós.
         - O senhor é o protegido do vigário? - perguntou-me.
         - Sim, senhora, E estas jovens também!
         - Muito bem! - disse a senhora - Eu sou Irmã Lívia. Chegaram aqui numa hora oportuna, pois temos muito o que fazer neste albergue!
         - Meu Deus! - pensei - Estou condenado a cinco anos. Como irei pagar minha estada aqui?
         A senhora parecia ter lido meus pensamentos, porque me respondeu:
         - Não se preocupe. Eu estou precisando de todos os quatro!
         Perguntei o que podíamos fazer, e ela logo nos deu uma tarefa. De repente, ouvimos gritos.
         - Essa mulher vive tentando o suicídio. - nos explicou Irmã Lívia - Como foi suicida, quer acabar de vez com a vida. Porque não quer viver, cada vez que faz uma loucura piora  sua situação...
         - Eu sempre ouvi dizer que os suicidas ficam vagando... - arrisquei falar.
         - Sim, porém Deus não a deixou porque, com todo este ódio e revolta, ela iria provocar muitos desencarnes e, então, foi preciso que agíssemos.
         Senti uma simpatia imensa pela mulher e me aproximei dela e quase soltei um grito de espanto: era Marta, velha conhecida minha. Por que o vigário me trouxera até aqui? Conheci aquela moça na cidade onde eu vivia. Éramos até meio aparentados. Sei que ela se envolveu com uns espíritas e a partir daí se acabou.
         - Sim. - disse Irmã Lívia - Conheço bem a sua história. Não era espiritismo, mas sim uma pobre mulher que vendia suas faculdades mediúnicas...
         - Sim, se me permite - disse eu - esses espíritas apenas recebiam presentes das pessoas que queriam agradecer.
         - Receber presentes é o mesmo que cobrar. É uma maneira de cobrar mais caro!
         Pela maneira que Irmã Lívia falava, eu me convencia. Cheguei perto de Marta e ela gritou:
         - Saia de perto de mim, exu!
         - Eu sou Ditinho, irmão do Júlio!
         - Seu cachaceiro inveterado! Imbecil! Foi você quem matou Fulgêncio, meu marido, que nunca lhe fez qualquer mal!... - disse Marta, que saiu correndo e desapareceu na escuridão.
         Atônito, eu não sabia o que fazer. Tive medo de sair atrás de Marta e me perder, sem a proteção de Irmã Lívia. Comecei a me preocupar, seriamente, e só que, desta vez, havia uma grande diferença: não era comigo e, sim, com Marta! Como eu havia matado seu marido? Procurava me lembrar daquela noite fatal. Só me recordava do barzinho... ouvia tiros, via alguém apontando uma arma... cadáveres... sirenes de polícia e de ambulâncias... e só, mais nada! Eu matara um amigo? Deveria estar bêbado... Oh, meu Deus! Sempre fui irresponsável, porém nunca havia chegado ao ponto de fazer tanto mal! E agora? Agora é tarde! Pobre vigário, que deve ter sofrido tanto por mim! Oh, meu Deus! Não terei mais paz. Como saberei a verdade? Por acaso, não será mentira desta louca?
         - Venham! - disse Irmã Lívia - Vão descansar um pouco. Descansem-se! Eu nunca tenho tempo, nunca mais descansei...
         - Por que a vida aqui é tão agitada? - perguntei.
         - Porque todos que desencarnam têm que passar por aqui. Os que sofreram e se reajustaram na Terra, passam por cima. Os que não tiveram seus reajustes, vêm se reajustar aqui. Por isso aqui é como um oceano em tempestade!
         - Tem algum nome esta cidade?
         - Sim, ANODAI! Porque é sempre noite, uma vez que o sol se esconde em uma grande muralha.
         - Ah, - disse eu - já devo estar aqui há muito tempo, porque desde que morri não vejo a luz do sol..
         - Sim, isso é normal. O sol é privilégio dos encarnados!
         Senti uma tristeza muito grande. Tive ânsias de sair correndo, como fizera Marta! Porém, senti que minhas forças iam se acabando. Pedi que chamassem o vigário. Eu queria morrer!... O vigário chegou e fiquei meio tolhido. Por fim, eu disse:
         - Oh, Irmã Lívia, eu queria me confessar e comungar. Tenho necessidade. Está certo este meu desejo? A esta altura já não sei mais o que está certo ou errado!
         - Está certo, Ditinho. Você está certo! Precisa de energia e só a adquirimos quando temos fé e somos honestos. Você logo se salvará porque sempre foi honesto. Tem a sorte de ter como guia este vigário, que é um santo, que nunca se afastou das normas da Santa Igreja.
         - Meu Deus! - exclamei, vendo entrar um lindo índio de toga, que me disseram ser Ypuena.
         Continuei observando o cacique Ypuena e, sem saber porque, fiquei preocupado com ele.
         O vigário, sem tomar conta dos meus pensamentos, chegou-se a mim e foi me acalmando:
         - Filho, diga tudo que te vai na alma. Liberta-te dos teus pensamentos! Arranques do peito todo o mal que te aflige!
         Então, contei-lhe tudo o que me sufocava. O mal que fizera praticando atos inescrupulosos quando estava em meu corpo, a dor dos meus dias de sol desperdiçados, as oportunidades perdidas... O bom vigário colocou a mão sobre minha cabeça, emitindo um raio de luz com tanta energia que me veio instantaneamente uma sensação de equilíbrio, sentindo-me como se estivesse em uma das lindas manhãs de sol na Terra! Que saudade sentia agora! Que firmeza!... Abracei Irmã Lívia, dizendo:
         - Serei sempre um seu servo, para te servir com amor!
         Irmã Lívia sorriu e me avisou:
         - Suas amigas, as três jovens, vão partir. São espíritas, e Ypuena veio buscá-las. Serão levadas para o sono cultural, pois terão que reencarnar.
         Uma das jovens se aproximou e pediu ao vigário que a ouvisse em confissão.
         - Como? - bradei - Ela é uma espírita e quer se confessar?
         - Oh, Ditinho, como podes ser tão egoísta! - falou o vigário - Aqui não há restrições por nenhuma seita ou religião. Aqui é um vale de recuperação. Temos que ajudar às pessoas em qualquer circunstância. Não devemos escolher as pessoas que nos procuram.
         A jovem foi com o vigário para mais distante de nós. Irmã Lívia abraçou Ypuena, saudando-o:
         - Grande cavaleiro! Sustenta um terreiro, Cabana de Pai Jerônimo, com todo amor e honestidade! Soube que lá já conseguiram evoluir, com a sua força, duas falanges de exus. Graças a Deus!
         - Sim, graças a Deus! - disse Ypuena batendo no peito e, quando batia, emitia luz de energia.
         Nisso, ouvimos outra das jovens que soluçava. Irmã Lívia foi acudi-la. Ela disse que também queria se confessar. O vigário a atendeu, e a calma voltou. Despediram-se e se foram, com Ypuena.
         - É, foram-se todos... - disse para Irmã Lívia - Acho que serei seu eterno hóspede! Sinto saudade da Terra, dos meus chinelos, do meu banho, dos raios do sol, das noites de luar!...
         - Oh, as noites de luar! - disse Irmã Lívia me levando até à janela - Terás uma agora mesmo! Ditinho, meu filho, vamos pedir a Deus pelos bandidos do espaço, para que eles fiquem bem longe e não voltem aqui para nos atormentar.
         - Como? Bandidos do espaço? Aqui?
         - Sim. São espíritos que vivem tirando o sossego de todo mundo. Quando encarnados, foram homens que não se realizaram na Terra, e se incriminaram a tal ponto que perderam a própria razão do bem. É uma falange milenar!
         - Meu Deus! - exclamei - Aqui tudo é tão complexo! As coisas são bem mais complicadas aqui! Sim, não são tão claras como na Terra, onde temos um começo. Aqui só sabemos que viemos de lá. Se o Homem conhecesse este estágio jamais facilitaria com sua missão na Terra! O Homem nasce, tem uma procedência, enfurece seu cobrador e fica aqui a se esconder dele!
         - Salve Deus! - falou Irmã Lívia - Veja os bandidos do espaço! Estão ali perto.
         - Cruzes! - disse assustado - Eles estão vindo para cá?
         - Não, pois temos uma proteção magnética. Não nos atingem nem mesmo suas vibrações.
         - É... tenho muito que aprender aqui!
         Irmã Lívia começou a me fazer algumas perguntas: como tinha sido meu casamento, porque minha mulher havia me abandonado... Respondi que tudo se acabou por causa da minha cachaça! Mas nunca sofri por causa disso, tendo continuado normalmente minha vida. Ela encontrou outra pessoa, com quem era feliz. Gostava muito dos meus pais e das minhas irmãs. É o que sabia. Disse também que não sentia saudade a não ser do sol... Perguntei para onde eu iria.
         - Ditinho, vais ter que freqüentar uma escola para poderes sair daqui. Terás que ficar aqui, exposto aos chegantes da Terra, por um período equivalente a seis anos terrestres, com muitas oportunidades de reajustes. Não cuidastes do teu corpo e o perdestes, antes do tempo, sem atenuar tuas cobranças. No fim deste período, passará por aqui uma senhorita, chamada Maria Rita. Lembra-te?
         - Sim, me lembro. Maria Rita foi minha namorada por muitos anos!...
         - Ah, bom. E o que fizestes com ela?
         - Deixei-a na pior condição, por falta de amor. Na verdade, nunca senti amor a ponto de me sacrificar por alguém. Oh, meu Deus! Como sofrem as pessoas que não têm amor! Lembro-me de uma mulher com três filhos a quem nunca dei atenção...
         - Por que?
         - Porque não eram legítimos.
         - Deixe isso para lá, Ditinho. Vamos cuidar para que tenhas uma vida nova!
         Oh, meu Deus! Queria poder amar alguém, queria voltar para a Terra, ter novamente uma família, sofrer, ter alguém a quem pudesse ser útil, enfim, evoluir! Não tinha noção do tempo, mas achei que se haviam passado alguns dias quando eu estava recostado em um sofá e fui alertado por gritos e um ruído estranho. Cheguei à janela e abri as pesadas cortinas. Qual não foi minha surpresa: eram bandidos do espaço, rosnando como animais ferozes, querendo agarrar as suas vítimas. Olhei naquela escuridão e pude ver, claramente, o espetáculo. Aí me dei conta de outro fenômeno: os olhos do espírito enxergam na escuridão da noite! Não vacilei. Acostumado a não dar valor ao meu corpo, pulei para fora e fui lutar contra os bandidos. Após uma luta desigual, fui aprisionado por eles e levado para uma caverna, à frente de um bar, de onde vinha o ruído de risadas, assuntos de negócios, etc.
         - O melhor que faço é ficar quietinho, à mercê desses bandidos. - pensei, me colocando junto a outros prisioneiros desconhecidos que ali estavam. Não sei mais como descrever o que passei naquela caverna! Aqueles espíritos se maltratavam até entre eles mesmos, não se via o menor vestígio de luz! O pior é que ainda estávamos sob os efeitos da energia cármica e, assim, sofríamos, sentido as dores das torturas a que eles nos submetiam. Ficava evidenciado o estado de irrealizações sexuais e o que isso causava nas provocações despertadas entre eles próprios. Fui tomado por terrível preocupação a esse respeito. Lembro-me que um dos bandidos trouxe até mim uma linda jovem, na mesma sintonia. Meu Deus! Eu estava tão distante da Terra! A verdade, Tia Neiva, é que eu sofria os impactos das revelações e pensava onde estavam o meu vigário e a minha querida Irmã Lívia que não tinham evitado que eu caísse na triste situação em que me encontrava. E quanto mais eu pensava em sair dali, mais ficava preso! Comecei a vibrar no vigário. Lembrei-me das lições de Irmã Lívia que me dissera: quando estamos em dificuldades, devemos mudar nossa sintonia. Passei à prática, começando a mentalizar Jesus. Minha dor era tão grande que eu não tinha forças para por em prática os ensinamentos de Irmã Lívia. As forças magnéticas me enlaçavam como verdadeiros cepos de urtiga... Já estava perdendo as esperanças quando consegui criar forças e gritar:
         - Oh, Jesus! És minha última esperança! - E, sem sentir... - Dá forças também a estas pobres almas!...
         Então, senti novas forças se apoderando de mim e todo o ambiente se modificou. Senti que poderosa faixa crística havia chegado e, agora, dominava o ambiente. Levantei-me e, esquecido de mim mesmo, pensava somente em ajudar os indefesos que estavam ali, sofrendo mais do que eu. No instante daquele gesto, senti como se fosse um super-homem! Pensei comigo: é tudo ou nada! Somente a força crística nos faz amar tanto. Lembrei-me de meus protetores - Irmã Lívia e o vigário - que me haviam dito que quem tem o amor crístico sente ternura pelas criaturas. Sim, agora eu tinha certeza de pertencer a uma faixa crística! Comecei a falar, com desejo de ser ouvido, com pena dos que ali estavam sofrendo, e sem me preocupar comigo mesmo. Gritei para os bandidos:
         - Parem! Não sabem o que estão fazendo!... Conheço outros planos, mundos civilizados e um Deus Todo Poderoso!
         Gritava com todas as minhas forças, dizendo muitas coisas com plena convicção, e comecei a sentir a assistência do meu vigário protetor. E, com espanto, vi surgir ali, como que por encanto, o grande índio Ypuena, porém sem o seu resplendor. Ele fez como se não me conhecesse e gritou:
         - Tirem esse homem daqui, pois ele nos complica!
         Suas palavras eram como ordem para aquela gente. Quando ele me disse: Desapareça!, nem pestanejei. Sai dali me sentindo como que magnetizado, e pensando:
         - Segunda enrascada! Na terceira, não sei o que será de mim. Que mundo será este?
         Notei que o ambiente se tornara mais claro. Enquanto eu pensava, recebi a resposta:
         - Fizestes uma boa ação, deixastes de ser egoísta! Na Caverna de Esmeralda, a pomba-gira, só pensastes em ti mesmo. Porém, desta vez, foi diferente!
         - Para que tudo isso? - pensei - Para me testar?
         - Não, - disse meu orientador - nada disso!
         Sim, porque toda aquela explosão? Foi a força ou a maneira como eu invoquei Deus? Desta vez eu não chamara Deus por um simples hábito. Chamei, realmente, por amor, com desejo sincero de sentir Sua presença. Tinha sido bem diferente, realmente. Essas respostas eu recebia dentro de minha cabeça, mas com a certeza de que vinham de mundos evoluídos. A partir daquele momento, continuei a perambular, porém consciente da minha missão, ou melhor, da minha condenação! Teria que fazer naqueles mundos escuros o que deixara de fazer na Terra, confortavelmente, sob os raios do sol! Não me sentia digno, sequer, de clamar por Deus. Enquanto pensava, caminhava sem destino, cautelosamente, e sentia no coração o que há muito não sentia: saudades, angústias, saudade da querida Irmã Lívia! Oh, meu Deus! Quanto tempo se passou! Senti minhas forças se acabando e me sentei, chorando copiosamente. Pensava: Oh, Jesus, o que me resta? Súbito, minha mente começou a despertar. Comecei a me lembrar daquela criatura a quem fizera tão infeliz. Qual seria o seu estado de espírito? E os meus três filhos? O que deveriam estar pensando de mim? Sim, fiz tudo errado! Tenho que me conformar! Eu brinquei demais, mas, agora, não escapo. Lembrei-me das palavras de Irmã Lívia, que dissera que eu estava sob a bênção de Deus, e isso foi como um bálsamo para o meu coração. Retomei minha caminhada. Caminhei muito, não sei por quanto tempo. Todas as minhas reações afirmavam que o tempo e o espaço nós marcamos de conformidade com a nossa condição de espírito. De repente, como que por encanto, surgiu à minha frente minha confortável pracinha! O sofrimento nos ensina muita coisa! A pracinha, tempos antes, me dava angústia, me deprimia. No entanto, agora, era a minha pracinha da esperança! Coloquei as mãos no rosto e desatei a chorar. Em meio àquele pranto, ouvi uma voz me saudando. Levantei os olhos e vi uma mulher me olhando. Pensei estar em um mundo de fadas! A esta altura, pensei que tudo era possível. Reconheci Gilda, uma jovem de vida irregular, que vivia no baixo ambiente da Cinelândia, no Rio de Janeiro. Foi lá que eu a havia conhecido.
         - Como veio parar aqui? - perguntei surpreso.
         - Não sei. Sofri uma forte dor de cabeça, que me transtornou. Não sei o que me aconteceu... Só me lembro de que fui presa, não sei por quem, mas consegui me libertar e corri, corri, e aqui estou! E você, por onde tem andado? Há tantos anos não lhe vejo!
         - Realmente, deixei o Rio e fui para uma cidadezinha de Minas Gerais, onde me casei. Mas nunca me realizei com o casamento! Minha mulher me deixou, levando os três filhos. Apenas um era meu. Ela era viúva, quando a encontrei, e já tinha dois filhos, dos quais eu gostei muito. Todavia, enveredei na maldita pinga e ela não teve capacidade para me ajudar... Porém, sempre pensei em você!
         - E, no entanto, me abandonou! - disse Gilda.
         Pensei, cautelosamente, em Deus. Deus é um ser supremo. Jamais me esquecerei da explosão na caverna. Se eu O invocasse, Ele poderia me arrastar daquela situação embaraçosa. Ouvi, então, a voz do vigário:
         - Deixe de ser mal agradecido, Ditinho. Estavas prisioneiro naquela caverna, invocastes por Deus e Ele te libertou. Agora, tens medo?
         - Oh, não! Não foi isto que pensei. Oh, meu bom vigário!
         Na realidade, eu não queria me afastar de Gilda, por quem eu estava apaixonado! Mergulhado nos meus pensamentos, avaliava se eu deveria me ligar àquela jovem e a seu carma. Teria que ficar em sua companhia? Senti que laços transcendentais nos ligavam e, apesar de nossa triste condição de sofredores, entendi que me envolvia no mais puro e maravilhoso romance de amor. Pensei: somente os que sofrem sabem o que é o amor, o que é ter uma companheira! Sem noção do tempo, vimos uma luz que vinha do alto, ao longe, em nossa direção. Pensei que viesse abençoar nossa união. Era Irmã Lívia.
         - Oh, Ditinho, que saudade! - disse ela, sorrindo - Que felicidade te ver ao lado de tua alma gêmea! Mas, infelizmente, tens que partir comigo. Vim te buscar!
         - Sim! Gilda vai conosco?
         - Não.  Ela terá que permanecer no Albergue de Nanã.
         - Como? - disse quase gritando - Como pode deixar esta pobre indefesa partir sozinha e sem a luz do sol?
         - Sim, mas também sem filhos e sem a necessidade de um corpo físico. Como és esquecido, Ditinho! Pelo que vejo, não te lembras do compromisso que assumistes, nesta mesma pracinha, por uma grande dívida que terias que pagar na Terra. Há cinqüenta anos, José, que só poderia viver na Terra por vinte e oito anos, onde se casaria com Alice, sua alma gêmea, a quem deixaria com dois filhos, recebeu de ti a promessa de cuidar deles, terminando de criá-los. E o que fizestes? Desencarnastes na cachaça e, o que é pior, os abandonastes aos frio, à fome e à desonra! Levastes Alice, aquela moça honesta, a se prostituir para sobreviver com os filhos!
         - Sim, que vergonha! Sei de tudo isso, mas não sabia do compromisso!
         - Não, não me abandones! - gritou Gilda desesperada.
         Confesso que ouvi nos gritos de Gilda os mesmos de Alice, quando eu a expulsei de casa.
         - Meu pobre amor! - disse eu a Gilda - Não tenho forças para te acompanhar...
         Os remorsos me puxavam para trás. Irmã Nívia nos falou, com muita ternura:
         - Um dia, não muito distante, se encontrarão novamente, Ditinho. Deus perdoa aos que amam. Tudo farei para que, um dia, tu venhas protegê-la.
         - Mas como eu poderei encontrá-la?
         - As almas gêmeas mesmo quando se separam, nunca se perdem. Ensinarei o que deverão fazer.
         Nisso, chegou o vigário e, como se ignorasse o que estava acontecendo, perguntou:
         - Oh, como vão? O que aconteceu? Estão todos com cara de dor!
         Quando me virei para pedir clemência ao vigário, foi tarde. Gilda havia desaparecido! Vendo a minha decepção, o vigário tentou me consolar:
         - Os rastros daqueles que realmente amamos nunca se apagam!...
         - Oh, meu Deus! - gritei, desabafando - Oh, minha querida Irmã Lívia! Oh, minha irmãzinha, faça alguma coisa por mim!... A senhora é minha última esperança!
         - É claro que faremos... Faremos muito por ti, Ditinho!
         Partimos para o albergue, que eu não sabia que ficava tão perto. Estava cheio de pessoas, e eu entrei ali, cumprindo a minha sina. Chegamos na bendita “Hora da Prece”, quando foram servidos lindos pratos contendo como que neves coloridas, soltando vapor também colorido. Desinformado, ergui minhas mãos para receber um prato, mas o vigário de deteve, dizendo baixinho:
         - Não, Ditinho, você não pode ainda receber isso. Não tem bônus nem merecimento!
         Fiquei tolhido e, muito envergonhado, vi que o vigário tinha razão. Todos os que recebiam aquele prato pagavam com os seus bônus. Eu tinha tanto medo de chamar por Deus, mas, naquela hora, não resisti. Sempre que sentia alguma dor, pensava em me suicidar. Mas, agora, não. Eu só pensava em me reencontrar com Gilda.
         - O que tem nesses pratos? - perguntei ao vigário.
         - São manjares que vêm direto de Jesus! É pura energia!
         Comecei a perceber que as pessoas que estavam ali, recebendo o manjar, já não tinham mais mágoas nem ressentimentos. E eu ali estava, cheio de ressentimentos, revoltado em ter tanto sofrimento, sofrendo recriminações por causa do meu casamento fracassado. Achava que, sendo assim, o mundo inteiro, lá embaixo, estaria perdido. Foi como se eu estivesse pedindo uma resposta. Alguém bateu à porta do albergue. Vi Ypuena ir abrir a porta e receber um homem.
         - Ele está chegando! - disse o vigário - Veio recentemente da Terra.
         - Oh, como vai, Zacarias? - falou Ypuena - Você é um homem espetacular, formidável... A sua atitude com Maria do Carmo... Aquele seu desquite foi mesmo providencial. Seus quatro filhos não poderiam continuar sofrendo os impactos da incompatibilidade do casal.
         E eu que pensava em perguntar tudo sobre a Terra, o sol, a lua, gritei, sufocado:
         - Então estão fazendo a maior injustiça comigo! Estou aqui, sofrendo, porque abandonei uma mulher com quem havia me casado, e seus três filhos, sendo somente um meu, pois os outros dois eram de seu falecido marido. Oh, meu Deus, como estou sendo injustiçado!
         - Oh, Ditinho, meu pobre Ditinho! - disse o vigário - Ainda não tens consciência do teu destino! Vivestes sem amor, sem esperança e, o que é pior, sem qualquer conhecimento da Lei de Causa e Efeito. Se batemos, apanhamos... Se damos esmola, recebemos milhares de outras... Quem não trabalha em benefício dos outros não encontra quem lhe ampare!
         - Sim, - disse eu revoltado - quem não trabalha, não come, não é isso mesmo? Mas veja, na Terra a gente come! Mesmo sem trabalhar, a gente tem delicadezas uns com os outros... Ah, aqui é realmente muito diferente! É quando estamos na Terra que compramos as coisas e ainda pagamos ágio!...
         Não sei por quanto tempo fiquei ali, naquele estado de alma. Mas o tempo passou, muitas coisas aconteceram, até que resolvi trabalhar. Arregacei as mangas e comecei a socorrer toda aquela gente que precisava de auxílio. Meu pensamento fixo era quando eu iria reencontrar Gilda! Fazia mentalizações, sabendo que, assim, ela me sentia, aliviando a saudade e as angústias. Uma enorme cassandra parou em frente ao albergue, trazendo um homem recém-chegado da Terra. Irmã Lívia foi toda gentil recebê-lo.
         - Que dia é hoje? - indagou o chegante.
         - Aqui não nos preocupamos com isso. Datas nada significam para nós!
         - Não é assim que se responde! - disse o homem, apavorado - Não estou entendendo nada!
         O vigário se aproximou e o homem investiu contra ele. Já ia partir em defesa do vigário quando uma corrente magnética deteve o homem, que ficou duro como se fosse de pedra. Comecei a querer rir.
         - Concentre-se, filho! - disse Irmã Lívia, olhando para mim.
         Lembrei-me de Jesus, e uma luz foi descendo do céu, iluminando, libertando, transformando o homem apavorado.
         - Ditinho! - disse eu - Você falou em céu?
         - Sim, Tia Neiva, o mesmo céu. Quando estamos em outro plano - no plano etérico - enxergamos outro mundo mais amplo, embora não possamos ver a Terra, sentimos somente as vibrações. Enquanto os pensamentos me invadiam, a saudade parecia me matar! Saudade de Gilda! Por onde andaria? Súbito, senti uma vibração diferente e todo o panorama ao meu redor foi se modificando. Fui dizendo baixinho: Deus, Pai, Espírito Santo... Levei minha mente à minha amada Gilda. Oh, que desespero! Foi horrível! Gilda apareceu à minha frente, toda enrolada em um manto, e seu rosto, antes lindo, era monstruoso. Meu Deus! Ela desapareceu tão rápido quanto havia chegado. Atordoado, vi que todos já haviam entrado e só eu estava ali fora com meus pensamentos. Corri e entrei. O homem estava deitado num esquife.
         - Morreu? - perguntei à Irmã Lívia..
         - Estamos na vida eterna! Aqui não se morre. A morte é somente da carne. O que estamos fazendo é isolando as pesadas vibrações deste homem. E tu, o que tens? Estás sob forte influência de uma força negativa!
         - Não, não estou sob qualquer influência negativa mas, sim, sofrendo terrivelmente!
         - Tudo vai dar certo, Ditinho. Breve Gilda vai chegar toda linda. Nanã me disse que ela está indo muito bem.
         - É mentira de Nanã! - gritei - Agora mesmo a vi, e ela estava horrível!
         - O que é isso, Ditinho? Como te atreves a duvidar de mim?
         - Oh, minha irmãzinha, me perdoe. Sou mesmo um espírito desclassificado! Como pude lhe falar assim, se a senhora é uma das pessoas que mais amo?
         - Tira a terra de teu coração, Ditinho! Teu coração ainda está cheio de terra. Pensamos que, se tu  tivesses um objetivo na vida, poderias te evoluir mais depressa. Por exemplo: tu não te preocupas com teu filho, que ficou na Terra, nem com teus pais que, até hoje, choram a tua morte, e que também estão ainda na Terra! Pelo que vejo, Gilda se evoluirá primeiro...
         Ao ouvir falar de Gilda, senti uma grande dor no meu coração. Eu ainda não aprendera a amar as coisas feias, como Gilda, que se apresentara naquelas formas horríveis!
         - Quero ouvir seus conselhos, Irmã Lívia. O que devo fazer?
         - Não devemos forçar as pessoas. Cada mente vai se evoluindo à medida em que vão avançando os seus bons sentimentos.
         - A senhora quer dizer que eu não os tenho?
         - Sim. Quando amamos realmente, não exigimos qualidades. O quadro que vistes de Gilda não é verdadeiro. Fizemos tudo para que sintas todo e qualquer impacto. Não vês que todos trabalham?
         - Vejo sim e, graças a Deus, eu tenho ajudado bastante.
         - Realmente, tens ajudado. Mas por dignidade e não por amor!...
         - Como? - perguntei espantado - Não estou sempre acudindo estes infelizes, a ponto até de me expor aos bandidos? Por forças de circunstâncias, até agora a senhora não me serviu o manjar.
         - Hoje eu lhe servirei! - disse Irmã Lívia, terminando de falar justamente na “Hora da Prece”.
         O homem continuava esticado no esquife, como morto. Veio uma cassandra para levá-lo. Para onde, eu pensava: para o Canal Vermelho? Como seria este Canal tão falado? Uma enorme cidade como o Rio de Janeiro? Não... Pequeno como a palma de minha mão? Não tinha a menor idéia!
         - Ponha tua mente para trabalhar, Ditinho! - disse Irmã Lívia - É uma grande planície isolada por enorme muralha magnética.
         - Eu irei morar lá algum dia?
         - Sim, mas só depois de completares o correspondente a teu tempo na Terra!
         - E este homem que chegou. Também não morreu no tempo certo?
         - Não exatamente. Sua mulher lhe tirou a vida, e por isso ele chegou aqui.
         O homem já estava para embarcar quando outra cassandra desceu, e dela saiu uma mulher gritando, e, pelo simples olhar, vimos que tinha algo em comum com o homem. Sabe, Tia, nem vou mais descrever o que se passou. Ela discutiu, com ciúme de Irmã Lívia, pelos cuidados que dispensara ao homem, e tinha uma vibração tão intensa que fui obrigado a pedir socorro e a procurar aprender a me defender! Contudo, minha evolução para sair daquele plano continuou e não falhei. Graças a Deus, o meu dia chegou! Estávamos todos sentados no grande salão do albergue quando foi anunciada a visita de um grupo trazido por Ypuena. Os visitantes se acercaram de mim, me elogiando por ter evoluído aquela mulher. Disseram que, pelo meu merecimento, eu poderia fazer uma viagem à Terra, ao lado de Ypuena. Senti calafrios, chorei de emoção. Perguntei, então:
         - Com isso farei bem a alguém?
         - Não, ainda não. Mas não era o que pedias todos os dias?
         - Sim, era o que eu sempre pedia!... Queria ver um raio de sol, meus chinelinhos... Porém, agora, já me ensinaram o amor ao próximo e gostaria de pedir, se me fosse permitido escolher, que eu levasse estas bênçãos ao albergue de Nanã e, talvez, libertasse Gilda? Poderia levar um pouco deste manjar... Se eu for para a Terra, sei que terei horas felizes... Verei meus filhos, a quem voltei a amar, gastarei esta energia mas não estarei fazendo com ela a verdadeira caridade!
         - Sabe quem é Nanã?
         - Só sei que ela é severa para conquistar os bárbaros, porém ama os humildes e ignorantes das bênçãos de Deus, como fui eu um dia!
         - Está bem! Terá a sua viagem até o albergue de Nanã.
         Meu coração começou a bater descompassadamente. Oh, meu Deus, como estará Gilda? Eu, que nunca soubera amar as coisas feias, como reagirei? Lembrei-me daquela bênção de Ypuena quando estava na caverna dos bandidos. Fora tão suave, tão providencial... Não estava mais disposto a gastar os meus bônus para satisfazer o meu egoísmo. Tinha que ajudar Gilda. Pedi e recebi um passe do abençoado vigário, e partimos. Passamos pela pracinha e vi pessoas sentadas nos bancos. Deviam ser irresponsáveis, como eu fora um dia, pensei.
         - Não julgues assim, Ditinho! - falou Ypuena - Tenhas caridade com as pessoas. Vamos fazer uma prece, pedindo a Deus por elas!
         E, realmente, enquanto vibrávamos, vi uma luz que descia sobre elas, em seu socorro.
         - Viu? - disse Ypuena - É o efeito de nossa prece...
         - Quer dizer que as pessoas que aprenderem a rezar, na Terra, não irão padecer tanto quanto eu?
         - Deveras! E, também, aprendendo a praticar a caridade.
         Enquanto eu levitava ao lado de Ypuena, lembrava meu aprendizado, sentindo todo o amor por tudo que recebera. Sentia a transformação do meu espírito. Notei que estávamos descendo.
         - Sim, estamos descendo. - explicou Ypuena - Esse plano é quase na crosta da Terra.
         - Tem sol?
         - Não. Não notastes que está mais escuro?
         Chegamos à lua, e Ypuena parou, projetando a força magnética da lua para o albergue de Nanã.
         - Estamos em perigo! - disse Ypuena - Fique quieto!
         Passaram, então, como uma avalanche, muitas pessoas, uma multidão que não nos notou. Tudo voltou à calma, e chegamos ao albergue de Nanã. Oh, meu Deus! Foi um quadro que nunca esquecerei! Panoramas das mais variadas formas. Nanã, carinhosa, veio ao nosso encontro, acompanhada de muitos espíritos, entre os quais haviam alguns meus conhecidos. Reconheci o dono do bar, que me falou:
         - Oh, Ditinho! Soube pela Gilda que você estava no Umbral e logo seguiria para o Canal Vermelho! Enquanto isso, estou aqui, penando. Fui aprisionado pelos bandidos do espaço e leiloado. Mas Nanã me comprou e já me prometeu que vai me levar para lá, também.
         - Eu não estava no Umbral. Lá se chama Anodai, porque só tem lua, lindas noites de luar!... Mas, onde está Gilda? Sabe notícias dela?
         - Ela foi até Salmônia buscando recuperar uns jesuítas que, há mil anos, lutam para voltar à Terra em busca de uns tesouros que deixaram enterrados por lá.
         Apesar da saudade, senti alívio por Gilda não estar por perto. Ypuena, que me observava de longe, chegou-se a mim e disse:
         - Fica tranqüilo, Ditinho. O quadro que vistes de Gilda não é verdadeiro! Foi fruto de tua mente atrofiada. Gilda vai te aparecer bem mais bonita e terna, pois seu espírito humilde, na Terra, se redimiu. Outrora, Gilda fora uma orgulhosa condessa!
         Perdi a noção do tempo. Ypuena deixou que o dono do bar continuasse a falar:
         - Ah, Ditinho, quando você morreu, Alice se casou com o José Passarinho. Como você sabe, ele é um bocado rico, e estão muito felizes.
         Nisso, Gilda chegou. Fiquei paralisado pela emoção. Estava linda! Nos abraçamos com todo nosso amor, esquecidos de que havia mais gente junto a nós.
         - Oh, meu querido Ditinho, veio para ficar comigo?
         Engoli em seco, tomado pela emoção, mas consegui responder:
         - Sim, minha amada Gilda! Não sei o que nos reserva nosso destino, a vontade de Deus ou a de nossos mentores, mas quero ficar com você!
         - Ainda não! - disse Ypuena - Tenho ordens de te levar de volta para nossa Irmã Lívia!
         - Vai me levar de volta e me deixar morrendo de saudade de minha querida Gilda?
         - É preciso. Gilda está evoluída e saberá entender o que tu ainda terás que fazer...
         Continuamos abraçados, e Gilda, entristecida, falou:
         - Entendo! Eu já completei o meu tempo aqui, e tenho que partir. Passei cinco anos no Umbral, e dizem que o Umbral é o inferno na Terra! Como pode? É preciso ter muita terra no coração para se falar uma coisa destas! Deus não colocaria um filho seu no fogo do inferno!...
         Com tristeza e já com saudade, acompanhei Ypuena de volta ao albergue de Irmã Lívia.
         Agora, Tia Neiva, peço que me ajude!

- FIM -

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