7 de mai. de 2011

SOB OS OLHOS DA CLARIVIDENTE


SOB OS OLHOS DA CLARIVIDENTE


INTRODUÇÃO

        
Caro Leitor:
         Este livro não é, apenas, um livro espírita. Ele é uma mensagem descontraída, simples, que visa você, particularmente.
         As estórias aqui contadas são experiências autênticas, vividas, e mostram a relação natural e inexorável do ser humano com seu passado transcendental, as vidas que viveu anteriormente, e, ao mesmo tempo, com os que o cercam.
         Ele irá responder, através da vida dos personagens registrados, por que você veio parar neste planeta, o que você veio fazer aqui e para onde você irá quando terminar seu estágio!
         É possível que, nas várias estórias aqui contadas, você não se encontre totalmente. Mas irá encontrar muito de você mesmo e imensas possibilidades de identificação. De qualquer forma, ele, o livro, não pretende torná-lo religioso; ele nem fala de uma religião! Pretende, apenas, mostrar o porquê do sofrimento e as causas ocultas do desequilíbrio humano. Essas causas são ocultas por natureza, apenas estão ocultas pela própria cegueira que a dor nos causa e que o bálsamo suave do Amor irá minorar. Sim, no fundo, este livro é uma mensagem de Amor a você! Você que vive com sua dor, incompreendido. Abra-o sem se preocupar em ser convertido, crençado, proselitado; desinibido, sem medo de ouvir a voz do seu próprio espírito! Sim, porque ao lê-lo, preso aos enredos simples e humanos, você irá ouvir a voz do seu próprio íntimo, o repositório transcendental que está presente no seu coração.
         É lógico que o livro pretende alguma coisa: pretende levá-lo a ter esperanças no dia de amanhã, e, quiçá, no de hoje; a saber que você, além de tudo, é molécula viva e encadeada num infinito de moléculas que compõem este imenso universo; ao conhecimento de sua posição lógica na ordem das coisas; a viver em paz consigo mesmo.

Mário Sassi


OS PRIMEIROS PASSOS


         Sentamo-nos, a Clarividente e eu, aproveitando uma pausa de nossos trabalhos mediúnicos.
         A noite se alongava na madrugada quieta do Vale do Amanhecer, e vacilávamos em nos entregar ao repouso, face às inquietações trazidas do mundo invisível, resíduos naturais das centenas de pessoas que haviam passado por nós em busca de socorro espiritual.
         - Em 1960, – dizia ela a, respeito do seu quadro espiritual e missionário – sim, em 1960, eu não tinha uma conduta moral adequada ao meu quadro mediúnico, embora minha clarividência fosse tão grande como agora. Apesar das advertências de meus Mentores, aos quais dava pouca atenção, pensava que caridade era revelar tudo o que ouvisse do passado ou do futuro das pessoas que me procuravam. Não tinha qualquer preocupação ou escrúpulo com o que essas revelações pudessem trazer a elas, ainda que fosse a loucura. Já havia feito meu juramento espiritual, no qual penhorara meus olhos ao Cristo em prol da verdade, e julgava que isso bastasse.
         Interrompi a narrativa:
         - Mas, isso era assim tão mau?
         - Com essa atitude, as pessoas saíam de perto de mim pior do que quando chegavam! Fui, então, colocada ao lado de um vidente, não clarividente, tão irresponsável quanto eu na ocasião.
         - Percebo. – disse eu – Não tinha remorsos por impressionar assim as pessoas?
         - Não, – respondeu – exatamente ao contrário. Devido ao juramento, julgava que era obrigada a dizer tudo, desde que dissesse a verdade.
         E continuou:
         - Certa vez fui a um psiquiatra, pois me julgava desequilibrada, e quase matei o pobre homem...
- Como?
         - Enquanto ele me ouvia, procurando entender o meu caso, deparei com uma figura ao seu lado, que fazia gestos, chamando minha atenção, pois, como você sabe, eu vejo e ouço nos dois planos, simultaneamente. É como se me desdobrasse em duas ao mesmo tempo. Esse fenômeno, no princípio, me atordoava. Com o tempo, porém, consegui manter minha atitude coerente no mundo físico, como se nada estivesse vendo ou ouvindo. O fato é que o espírito de um senhor de certa idade insistia em dizer que era o pai do psiquiatra e que havia morrido há dois meses.
         - E a senhora, o que fez?
         - Não tive dúvidas, fui logo dizendo para o doutor: olhe, seu falecido pai está ao seu lado!
         - Mas, – perguntei eu – não foi bom ter acontecido isso? A senhora não deu uma prova da existência do espírito?
         - Não! Minha missão ali era a de receber o que o psiquiatra pudesse me dar, e não fazer uma demonstração de minhas qualidades mediúnicas. E, também, arrisquei muito. E se aquele espírito não fosse do pai dele e ele ainda fosse vivo? Quantas vezes os espíritos sofredores mistificam com perfeição, tomando a aparência das pessoas, dando endereços e indicações corroboradoras do que pretendem afirmar? Com a minha atitude eu já caminhava para a loucura e levava os que me cercavam para o mesmo caminho.
         Fez uma pausa, e prosseguiu:
         - Nesse tempo, fui procurada por uma senhora idosa, de aspecto doentio, que disse precisar de mim. Estava muito doente e não tinha recursos para procurar um médico. Eu morava no Núcleo Bandeirante, e estava pronta para ir ao Plano Piloto, tratar de meus negócios. Eram mais ou menos onze horas da manhã e, com receio de perder os encontros, pedi que ela me esperasse, e saí. Levei comigo meus dois filhos pequenos, que me ajudavam um pouco no ganha-pão cotidiano. Mergulhei nos negócios e esqueci da mulher. Absorvida em meus afazeres, não percebi o tempo passando. Havia almoçado com meus filhos e, subitamente, justo às três horas da tarde, percebi a presença, junto a mim, de um Guia, que me disse:
         - Neiva, volte depressa para sua casa. Aquela mulher que você deixou à sua espera, esta manhã, está passando muito mal, e vai morrer. O seu pessoal, em casa, está apavorado, e não sabe o que fazer!
         Assustei-me, mas, ao mesmo tempo, me senti revoltada com essa interferência indevida na minha vida. O Guia, porém, insistiu, acrescentando:
         - Essa é sua cobradora, um espírito que foi sua vítima numa encarnação passada. Vá depressa!
         Agastada com a insistência, respondi, sem perceber que falava no plano físico:
         - Ela que morra! Não vou deixar minhas obrigações por fazer. Afinal, tenho que comer, não tenho? Tenho que ganhar dinheiro, não tenho? Não, não vou!...
         Vendo que eu estava falando sozinha, meu filho, espantado, perguntou o que eu dissera, e tive que lhe explicar que estava falando com um espírito.
         - Quem era? – perguntou ele.
         Respondi, então, que o espírito de chamava Mãe Tildes, nome abreviado de Mãe Matildes. Nesse tempo, essa querida amiga do plano espiritual já estava ao meu lado.
        - E a senhora foi? – perguntei.
        - Não. – disse ela – Só cheguei em casa pelas seis horas da tarde. Encontrei o Jair, um dos meus irmãos de trabalho, a ponto de ficar louco, pois a mulher estava agonizante. Diante desse quadro, fiquei desesperada. Nisso, percebi a presença do Vovô Indu, o médico espiritual que nos assistia em assuntos de doença. Olhei, então, na minha clarividência, e compreendi que se tratava de um reajuste espiritual. Só assim me apercebi da minha responsabilidade. Aquela mulher, deitada na cama rústica, semimorta, iria agora desafiar o meu poder mediúnico! Naquele instante, fiquei na dependência da fé, nos fenômenos que até então me pareciam simples visões enganadoras.
         Mãe Tildes, sem perda de tempo, começou a desenrolar o quadro de meu reajuste com a mulher. Enquanto isso, por sugestão dela, segurei as mãos da moribunda. Na minha aflição, concentrei-me no plano espiritual, sem perder o sentido no plano físico. Percebi que vários espíritos se movimentavam em torno da paciente, e ouvi Vovô Indu explicando que se tratava de um problema cardíaco.
         No plano físico eu ouvi uma voz bem junto de mim dizer: Se essa mulher morrer, vai dar um “bode”!...
         Senti o peso da responsabilidade sobre meus ombros. Tudo porque não quisera ouvir a voz amiga de Mãe Tildes! Se tivesse vindo logo, teria providenciado a remoção da mulher para o médico, enquanto havia tempo. Agora, o perigo era a mulher morrer ali em casa.
         Avaliei minha posição e, então, pela primeira vez, prometi ao Pai Seta Branca que, dali em diante, obedeceria aos espíritos e procuraria amar as pessoas.
         O quadro que Mãe Tildes desenrolava como se fosse um filme cinematográfico, continuou.
         Mergulhei numa outra dimensão, no passado remoto, sem perder, nem por um momento, a noção do ambiente físico em que me encontrava.
         A paciente do catre transformara-se numa bailarina negra que dançava seminua. O chão era de ladrilhos brilhantes, e altas colunas egípcias levantavam-se para o teto. Sua dança sinuosa, ao som da música sensual, era toda voltada para um homem que estava recostado em um sofá baixo. Seu aspecto era de nobreza e enfado. A música foi morrendo e os últimos passos da bailarina terminaram junto ao nobre espectador, a quem enlaçou num abraço coleante.
         Ainda sem perder a noção do ambiente físico em que me encontrava, vi-me participando da mesma cena, e senti uma onda de ódio e ciúme subindo-me ao peito! Pelas vestes que eu envergava, percebia-me como uma nobre egípcia, e, num assomo de cólera, saquei um punhal de sob as vestes, e investi contra ela, cravando-o em suas costas! Com um grito estertorante, ela caiu de bruços, e morreu, entre golfadas de sangue que lhe saiam pela boca!
         Impassível diante da cena sangrenta, o nobre do sofá me arrastou para ele e, juntos, brindamos àquele meu gesto, considerado de coragem. Vi alguns escravos que entraram e carregaram aquele corpo que, até há pouco, era uma promessa de vida e de prazer!
         Ainda absorta naquela cena de alegria macabra, senti, subitamente, uma pesada mão no meu ombro e ouvi a voz da bailarina negra a me dizer:
         - Voltarei um dia, e você me pagará!...
         Na última cena que presenciei, vi-me na roupagem da nobre egípcia, com os olhos arregalados, como se fossem sair das órbitas, e, ao meu lado, o espírito da bailarina negra, Nicácia! Vivamente impressionada pelo que acabava de ver, voltei-me para Mãe Tildes, implorando socorro:
         - Não entendo, minha Mãe, porque, de tantos crimes que já cometi em outras encarnações, conforme você já me disse, esse me horrorizou tanto!
         Em vez de Mãe Tildes, quem me respondeu foi o mentor espiritual, Pajé:
         - Seus crimes – disse ele – sempre tiveram um cunho impessoal, em enredos políticos e na tentativa de evoluir os outros. Este, porém, foi todo pessoal, e é por isso que Nicácia está, agora, nas suas mãos. Se salvá-la, você dará testemunho da sua missão, e aproveitará a única oportunidade de conseguir o perdão do crime cometido num momento de paixão.
         Prometi, então, que dedicaria toda minha vida ao bem da verdade e da cura, e, mais uma vez, obriguei meus olhos ao Cristo.
         Num instante me transportei para a Casa Transitória, e vi a equipe de médicos espirituais que cuidavam de Nicácia, perdendo, por momento, a consciência no plano físico. Vi que conversavam entre si, e pelo que diziam, fiquei sabendo que Nicácia teria que permanecer na Terra ainda por dois anos.
         Voltei junto com os médicos, e retomei a consciência no modesto aposento. Estava ainda segurando as mãos da mulher, que voltava lentamente a si. Percebi que chorava, e perguntava pela filha, de nome Lídia.
         Subitamente, vomitou um miasma repelente, salpicando-me a roupa. O ambiente se desanuviou e, aliviados, todos agradeceram a Deus e a Seta Branca, pelo restabelecimento da doente.
         Exausta e abatida, abandonei a cena e refugiei-me na cabina do meu caminhão, onde chorei copiosamente, de dor física e moral.
         Nicácia morreu do coração, dois anos depois!
         A clarividente se calou. Lá fora, um galo cantou o prenúncio da madrugada fria. Despedi-me da missionária e encaminhei-me ao meu quarto. Estranho sentimento compungia-me o coração. Suas palavras e as cenas descritas estavam vivas nos meus sentimentos. Pensamentos cheios de conclusões cruzavam minha cabeça. Agora, percebia muita coisa que, antes, me passava despercebida. Atinava, então, porque a gente não entende uma clarividente quando é autêntica. Não basta ver o passado e o futuro. É preciso toda a responsabilidade, envolvimento e, principalmente, muito amor e dedicação...
         Neste resto de noite dormi cheio de presságios. Amanhã, seria outro dia a ser dedicado aos meus irmãos...

O DESFALQUE


         Noite de intensa atividade curativa no Templo do Amanhecer. Uma pequena multidão se comprime na área, grande, porém insuficiente para tantas pessoas simultaneamente. Médiuns e clientes, pobres e ricos, homens e mulheres, crianças e adultos, cada qual com seu problema e sua angústia!
         Ora sentada, ora cuidando de um e de outro, a Clarividente não pára um minuto, seus dois sentidos alertas, no mundo físico e no mundo espiritual.
         Três homens se aproximam dela. Pelas roupas, se percebe serem pessoas de certo trato. Nota-se o constrangimento em disputarem a atenção da preciosa médium, com os clientes mais familiarizados com o ambiente. Por fim, conseguem seu intento, e sentam-se com ela na pequena mesa de atendimento.
         Os olhos negros e profundos fitam, corteses, os três homens, enquanto eles se entreolham, embaraçados. Dois são de meia idade e outro aparenta ter uns cinqüenta anos. A tensão entre eles é visível. O mais velho toma a palavra:
         - Dona Neiva, – diz ele – viemos aqui lhe fazer uma consulta. Temos uma firma de assistência, e estes dois trabalham comigo. Este é Jairo, meu contador, e o João a senhora já deve conhecer, pois tem freqüentado este Templo. João é meu administrador, e foi quem me aconselhou a procurar a senhora. O problema é o seguinte: nossa firma vai mal, estamos passando por muitas dificuldades e, por último, para piorar a situação, descobrimos um desfalque de quase cem milhões de cruzeiros! Pois bem, Dona Neiva, a direção da firma está entre nós três e o fato é inexplicável. O que quer que seja, só pode ter sido feito por um de nós, pois os outros empregados têm pouco acesso a quantias tão vultosas. Somos amigos há muitos anos, e entre nós há muita confiança. Não quero que uma falsa interpretação venha a manchar essa confiança, mas a verdade é que a diferença do dinheiro existe e, se não localizarmos onde está o engano, correremos o perigo de uma falência. Por isso decidimos vir juntos consultá-la. A senhora é quem vai nos dizer o que está acontecendo. Se um de nós está sendo desonesto, a senhora vai nos dizer quem é.
         Do meu setor de trabalho eu vira os três homens se aproximando de Neiva, e tivera minha atenção despertada por eles, por conhecer um deles, que freqüentava o Templo.
         Naquele dia, o trabalho terminou um pouco mais cedo que de costume e, no caminho de casa, a Clarividente me descreveu a cena acima. Mais tarde, ela me contou o resto da consulta:
         Comecei a grifar seus nomes: Júlio, o engenheiro, sócio principal da firma, 48 anos; Jairo, o contador, 27 anos; e João, o administrador, 31 anos.
         Jairo, o contador, olhava-me intensamente, e tinha um ar de incredulidade, como se me desafiasse a dizer a verdade. Os outros estavam visivelmente constrangidos.
         De pronto afastei João de qualquer suspeita, pois conhecia seu quadro de uma consulta que me fizera dias antes. Como um raio, a culpa do contador se fez presente na minha clarividência, e sua atitude confirmava isso.
         A fim de ganhar tempo e ouvir Mãe Etelvina, a profetiza que me assiste nas consultas, comecei a grifar lentamente cada um dos nomes, como é meu hábito.
         Ali estava eu diante de um fato consumado, de um ladrão e suas vítimas! Meu primeiro impulso foi o de dizer claramente o que estava acontecendo. Bastava responder à pergunta do engenheiro ou à insolência do ladrão, e pronto... Por fim, Mãe Etelvina veio tirar-me da situação incômoda, pois já começava a ter raiva do contador desonesto.
        - Minha filha, – disse ela – diga-lhes que você prefere das as respostas depois de ver o quadro de cada um, separadamente, de consultar um de cada vez. Diga-lhes que você não tem capacidade de adivinhar quem roubou, mas que você pode ajudá-los olhando o quadro de cada um deles.
         Um pouco decepcionados, eles concordaram, e pedi ao contador que fosse o primeiro. Os outros se levantaram e foram se sentar no banco. Vi-me, então, frente a frente com o culpado. No mesmo instante, Mãe Etelvina começou a desenrolar o quadro pretérito dos três.
         Numa pequena província, de uma era remota, o atual engenheiro era um industrial próspero e pai de três filhas. O atual contador, o homem que esperava, impaciente, o meu pronunciamento, era um funcionário burocrático do industrial, e desposara a filha mais velha dele.
         A cena se desenrolava rapidamente diante de meus olhos.
         Outro quadro, e vejo o genro e empregado tornar-se amante da filha caçula. Outra cena, e o vejo esbanjando o dinheiro da mulher no jogo e, por fim, o desencarne repentino dele numa mesa de jogo.
         Depois dessa triste cena, vi o industrial, homem bom e paciente, recuperando as duas filhas com o auxílio de um amigo de ambos, o atual João. Por fim, os tempos terminaram, e vejo os três homens se encontrando no plano astral.
         A reação do industrial foi terrível, no seu encontro com o ex-genro terreno, mas este era um espírito estacionado e sua reação foi pouco diferente da sua atitude quando na Terra. O amigo comum, como sempre, procurava, junto aos Mentores, uma forma de conciliar aqueles destinos tão antagônicos.
         Os Mentores resolveram, então, recartilhar o programa do genro desonesto, e todos se prepararam para nova encarnação. Aqui chegados, todos se encontraram na presente situação. Para completar o quadro, o atual contador tornara-se amante da irmã do engenheiro, que, na encarnação anterior, fora sua filha caçula e amante do cunhado.
         Como um raio, passou pela minha cabeça a culpa do contador, e que bastava uma palavra minha para denunciá-lo. Procurei entender a razão de tudo aquilo. Mãe Etelvina veio em meu socorro.
         Pelo recartilhamento, o genro desonesto pedira a Deus para voltar junto ao industrial e sua filha, para reparar seu erro. Para isso, escolhera a prova terrível de ser ladrão e condenado. Essa era a razão porque me desafiava. Inconscientemente, queria ser denunciado, acusado e condenado! Ali estava eu, meu Deus, como uma espada da Justiça!
         O quadro era claro e insofismável. Para que aquele espírito considerasse o seu erro reparado, era preciso ser descoberto e condenado pelo engenheiro e pelo desprezo da sua atual amante, com o sofrimento que isso iria trazer a ela.
         Meu desejo era o de poder sumir dali e não ser obrigada a dizer coisa alguma, como tantas vezes acontece nessas consultas. Olhei para o homem à minha frente, e disse:
         - O senhor sabe que eu sei, não é verdade?
         Ele empalideceu e baixou a cabeça; nem sequer tentou negar.
         - Pois bem, – continuei – o senhor sabe, também, que sou obrigada a denunciá-lo aos seus companheiros. Caso contrário, passarei a ser sua cúmplice. O senhor foi quem deu o desfalque, não foi?
         - Sim, – disse ele – não sei onde estava com a cabeça quando fiz isso!...
         Meu coração doía, mas o olhar de Mãe Etelvina me obrigava a manter a atitude firme.
         - O senhor ainda está com esse dinheiro, não está?
         - Sim, gastei apenas sete mil cruzeiros.
         - Pois bem,, vou lhe fazer uma proposta: o senhor devolve esse dinheiro até amanhã, e eu farei tudo para ajudá-lo.
         - A senhora fará isso por mim? – perguntou, e seus olhos se encheram de lágrimas.
         - Sim, pode deixar por minha conta. Mande entrar o outro!
         O engenheiro Júlio olhou-me, apreensivo. Percebi, no seu pensamento, que considerava o contador culpado, e tinha quase certeza de que eu iria dizer-lhe a terrível verdade.
         Olhei para Mãe Etelvina, e seus olhos me fitaram firmes.
         - Então, Dona Neiva, já descobriu o autor do roubo?
         - Não, – disse eu – não vejo roubo na sua firma. O que vejo é um enorme engano bancário, um assunto complicado de cheques e um erro na escrituração. Só isso que vejo! Se o senhor confiar em mim, esse dinheiro irá aparecer e o senhor irá sossegar. Prometo, ainda, fazer um trabalho para sua firma, e o senhor irá pagar as dívidas e equilibrar sua situação. Seu contador é um homem bom e é seu amigo. Quanto ao João, nem se discute; conheço o quadro dele e é muito bom. Vá para sua casa tranqüilo, que, em dois dias, tudo estará solucionado. Deixe tudo por minha conta.
Em seguida, chamei o administrador e lhe disse mais ou menos a mesma coisa.
Vida espiritual intensa. Nessa noite levantei uma prece silenciosa em prol desses espíritos em conflito, e pedi a Deus que sempre iluminasse a Clarividente em sua missão espinhosa.
Dias depois, vi de novo os três homens no Templo., conversando animadamente com Neiva. Ela fez um aceno, e me aproximei do grupo.
- Mário, quero que você conheça esses meus amigos. Sugiro que você bata um papinho com o Jairo, aqui, e lhe explique um pouco da nossa Doutrina. Ele está propenso a trabalhar espiritualmente.
Como de hábito, expus da melhor maneira possível o que significava “trabalhar espiritualmente”, e meu atual amigo Jairo hoje é um dos companheiros de luta.
Logo que eles saíram, procurei uma brecha no trabalho e me aproximei de Neiva.
- Como é que foi o resultado da coisa? – perguntei.
- O melhor possível. O contador fez uma complicada manobra bancária e o dinheiro apareceu. Até os sete mil cruzeiros ele arranjou emprestado, e fez a reposição. A firma pagou todos os seus compromissos, e os negócios melhoraram. Ficou tudo azul! E você não sabe da melhor. O contador arrependeu-se tanto do mal que estava causando, que resolveu se casar com a irmã do engenheiro... Está bom?

OS AMIGOS DA OUTRA DIMENSÃO

Havíamos terminado o trabalho com um homem que chegara obsidiado e sentamo-nos, por momentos, na soleira da porta do Templo. Preocupava-me o diálogo agressivo com a entidade obsessora, onde um detalhe me intrigava: sua referência constante a Deus e à Justiça. Neiva fumava em silêncio, e seu olhar se perdia na distância. Aos poucos, começou a falar:
- É, tenho muito amor aos exus, e eles são meus amigos.
- Mas, afinal, o que é um exu, realmente?
- Ora, um exu é um espírito como outro qualquer, geralmente um homem de bem, um pai de família que desencarnou normalmente. O que os torna diferentes no mundo dos espíritos é que são cultos, cientistas, doutores, enfim, pessoas de posição. Desencarnam irrealizados, cheios de pretensões, agnósticos, descrentes das leis do Cristo. Como não crêem em coisa alguma, não aceitam as coisas simples. Tão pronto desencarnam, são atraídos para a companhia de entidades experientes na manipulação de forças.
- Forças do mal? – perguntei.
- Mário, quero que você me entenda bem. Não existem forças do mal ou forças do bem. Existem, simplesmente, forças, que são empregadas no bem ou no mal. Depende de quem as controla, e como as controla. Veja o exemplo da eletricidade. Se bem empregada, produz a luz, o calor e todos esses benefícios. Se mal empregada, pode matar, incendiar, às vezes, até, em nome da Justiça, como a cadeira elétrica, que vocês dizem existir lá na América.
- Quer dizer que esses espíritos podem controlar essas forças tanto como nós aqui no Templo?
- Depende. Depende do plano de trabalho, da camada onde eles  operam. Geralmente, esses espíritos não conseguem atingir mais que um plano inferior, próximo da superfície terrestre, onde as forças são densas, animalizadas. Não aceitando o Cristo, a Lei do Amor e do Perdão, não sintonizam com as forças do astral. A não ser aqueles que lidam com a Magia Negra, que manipulam forças extraordinárias – às vezes com a bênção de Deus – a maioria deles trabalha mesmo é com o magnético animal – ectoplasma humano, mediunidade.
Apesar da minha ansiedade em saber mais, em aprender, a Clarividente se calou. Percebi que voltavam as reminiscências, e vi uma lágrima descer-lhe pelo canto dos olhos negros e belos.
- Lembra, Mário, – disse ela com voz triste – quando eu estava em Formosa? Montei aquela fábrica de roupas com tanto carinho, e fui tão mal recebida, apesar do amor que tenho por todas as criaturas. Já tinha sido despojada de tudo que possuía e, ainda por cima, fui levada à Justiça do Trabalho pelas minhas operárias, deixando-me na pior situação. Não podia continuar com a pequena indústria e, também, não podia sair. Sabedores de minhas dificuldades financeiras, os exus começaram a me fazer propostas.
- Exus fazendo propostas? – estranhei – Como é que isso acontecia? Sei que você vê e fala com os espíritos, assim como eu estou falando com você. Mas, como é que exus mostram interesse em problemas como esse, por exemplo, uma pequena indústria em dificuldades e uma Clarividente industrial, enfim, um quadro de fato esquisito?...
- Ora, é claro, Mário. Vivendo à custa das forças dos seres humanos, nas macumbas e nos ambientes de depravação, em lugares onde haja vida animalizada, esses exus se nutrem de tal maneira que são quase materializados. Por exemplo: eles ouvem a minha voz ou qualquer outra, mas não conseguem nos ver, ou melhor, eles vêem de acordo com o nosso padrão vibratório.
- Essa está difícil de entender. Quer dizer que eles vêem e não vêem? Como é isso?
- Explico. Sendo de outra dimensão, não tendo um corpo físico e, sim, um corpo etérico materializado, eles não vêem a luz do Sol. Ao contrário, a luz do Sol queima-lhes a emanação e sua iluminação não é percebida por eles. Para nós, encarnados, eles vivem numa espécie de noite permanente. Se, porém, nossa vibração está baixa, nossos pensamentos estão negativos, tristes ou sensuais, nós penetramos até certo ponto na noite deles, tornando-nos relativamente visíveis e audíveis. É por isso que somos assediados por eles. Ora, eu estava num estado depressivo, numa fábrica parada, vendo meus sonhos desfeitos, numa cidade hostil. Para agravar o assunto, estava comigo um rapaz de 19 anos, que tinha um quadro triste de assassinato. Ele havia ido pescar com meus meninos, e eu estava ansiosa para mandá-lo de volta a Brasília, para junto da mãe. Não via jeito de desviá-lo do destino triste.
- Ah! Eu me lembro do caso. De fato, ele foi esfaqueado pelo próprio padrasto, dias depois!...
- Nessa situação, é fácil perceber porque os exus se aproximaram de mim. Aliás, contribuía para isso, também, o ambiente daquela cidade antiga, com um passado cheio de crimes e cangaços.
Percebi que as explicações se alongavam, e lhe pedi que voltasse às propostas dos exus.
- Tive um contato muito sério com um espírito que disse se chamar Exu Capitano, – continuou – um exu que dominava uma falange de espíritos pelos quais era temido e respeitado. Esse exu pertencia à falange do Exu Marabô, e seu título de Exu Capitano lhe fora outorgado pelo Major Trajano, braço direito do Exu Marabô. Como você pode perceber, eles são organizados em complicadas hierarquias e usam roupas vistosas, de acordo com sua fantasia e sua posição.
- Roupas no plano astral? – perguntei.
- É lógico, Mário. Assim na Terra como no Céu, não diz o Pai Nosso? As coisas que existem aqui, existem lá. É lógico que é outra matéria, como você costuma explicar...
- Outra organização molecular, é isso que você quer dizer?
- Isso mesmo! Voltemos ao nosso amigo Capitano. Como você sabe, eu havia sido vítima de um seqüestro indevido. Haviam tomado tudo que existia na fábrica, vestidos caros, fabricados com grande sacrifício, máquinas de costura etc., e remetido para o depósito público da cidade, que era nos fundos de um bar. A ação judicial tinha sido feita com requintes de perversidade e, gratuitamente, os maiorais da Justiça estavam contra mim. Veja, agora, o que me disse Capitano: “Mulher, meu nome é Salviano, sou dono desta cidade, nascido e criado aqui. Se você quiser, vou acabar com esse tal de doutor Caio, que não vale nada. Aliás, tenho ódio dele e de todos daqui!"” A irradiação dele era de tal maneira, que o desespero começou a tomar conta do meu coração. De repente, vi-me levada ao padrão de ódio e marginalização que aquela situação aparentemente justificava. Compreendi, então, porque se deve amar os que estão em falta com a Justiça, e como o ser humano pode ser levado à revolta e ao crime se não tiver uma doutrina que o ampare. Mãe Tildes veio em meu socorro. Usando habilidades de um espírito habituado com nossos problemas, conseguiu fazer-me voltar à realidade. Sem que Salviano, atual Exu Capitano, percebesse, ela interrompeu aquela irradiação e voltei ao meu padrão normal de amor e compreensão. Capitano continuou ali, porém nossas posições mudaram. Percebendo que eu não me rendia à sua autoridade, nem aceitava seu auxílio, lastimou-se muito. Falou, procurando provar que minha atitude de amor e perdão era ilógica, que o Cristo era um vencido, que o que importava mesmo era o domínio das forças e a Justiça de Deus. Mas, o tempo todo, ele reconhecia e elogiava a minha força. Percebe, agora, Mário, porque eles não aceitam o Cristo e crêem em Deus? No caso, Deus é apenas um conceito que cada pessoa ou grupo concebe, à sua maneira. Em nome Dele se fazem justiças ou injustiças. Dois exércitos partem para a luta, em campos antagônicos. Em ambos os lados as armas são abençoadas e se pede a proteção de Deus. O Cristo, porém, o Cristo Jesus, não dá margem a interpretações pessoais. Seu Evangelho é nítido, por mais que se deformem as palavras, e pode ser entendido por qualquer criatura humana. Pode não haver aceitação – como no caso do meu amigo Capitano – mas a posição é nítida e clara.
Ouvi, pacientemente, a história de Salviano dos Santos.
Fora mau filho e péssimo marido. Casara-se com uma moça de nome Edite, a quem abandonou por outra, chamada Maria de Lourdes. Edite caíra na prostituição e morrera nas piores condições, odiando o homem que a infelicitara. Não tardou que Maria de Lourdes tivesse o mesmo destino, prostituindo-se e morrendo à míngua. O desencarne de ambas se dera mais ou menos vinte anos atrás. Enlaçadas pelo ódio comum, viviam a atormentá-lo, exigindo sempre a reparação. Ele, apesar do poder sobre tantos espíritos que escravizara, não conseguia se livrar delas pelo remorso de que era portador.
Já equilibrada e em harmonia comigo mesma, minha preocupação passou a ser a  de como salvar aqueles espíritos atormentados. Capitano passou a pedir-me socorro. Admitia suas mentiras e astúcias, e pedia que eu fizesse algo por ele.
- Mas, – perguntei eu – se ele era um exu poderoso, se tinha uma falange de escravos, se tinha convicção de sua posição, pedia socorro para quê?
- Amigo Mário, a posição negativa é falsa e a realidade que existe no coração de cada ser nunca é destruída. Essa realidade é a partícula crística, o átomo de luz indestrutível. Ela pode ser escondida, escamoteada pelo ódio e pelas trevas, mas sempre permanece latente. É por isso que existem dores, anseios, saudades e algo indefinível na mente humana. Acrescente a isso a situação do espírito desencarnado em nosso plano. Ao desencarnar, ele perde os instrumentos naturais de relação, que são os sentidos. A mente e as sensações continuam, porém sofrendo as deformações que a ausência dos sentidos produzem. O que faz o espírito nessas condições? Procura a energia que lhe permita manter-se na Terra. Essa energia é o fluido animal que nós emitimos e que existe em outras formas da natureza. Esse processo é difícil em todos os sentidos. Na obtenção do ectoplasma, ele é obrigado a incentivar a mediunização das pessoas em baixo teor. Seu padrão vai decaindo tanto, que ele lança mão do ectoplasma do sangue dos animais, comidas, plantas, etc. Imagine agora o mesmo problema de alimentação dos seus asseclas, espíritos transformados em serviçais, e você compreenderá o porquê da multiplicação das macumbas, das feitiçarias e todas as forças macabras do chamado diabolismo.
Neiva continuou. Procurando acompanhá-la, ansioso por compreender, comecei a sentir a sensação desagradável daquilo que ouvia. Ela me olhou e sorriu, no lusco-fusco da noite próxima.
- Está sentindo alguma coisa? – perguntou.
Assustei-me e disse que sim, que estava sentindo uma sensação desagradável, que atribuía ao assunto pesado.
- Não, – disse ela – não é o assunto que está influindo, mas, sim, a presença de alguns exus que estão nos ouvindo.
- Exus? – perguntei assustado.
- Sim, exus, amigos nossos que vêm ao Templo para ouvir a Doutrina e que estão interessados na nossa palestra. A emanação deles ainda é pesada, mas eles são amigos e estão aqui para melhorar suas vidas. Devemos ter carinho com eles!...
Pelo tom de voz em que ela falava, me compenetrei de que eles estavam ouvindo. É lógico, se estavam ouvindo a palestra, estariam ouvindo, também, a referência à sua presença.
Interroguei-a com um gesto, com medo de cometer algum erro, e ela me confirmou a suposição do fato evidente. Explicou-me que o trabalho de conversar com exus é muito cansativo, pois é feito de duas maneiras: pelo tom de voz alto ou com ectoplasma, o que materializa as imagens mentais no plano deles. E com um gesto de quem estava há muito acostumada com o fenômeno, continuou:
- Outro aspecto doloroso da sua vida é o físico. Eles estão numa posição antinatural. Nem pertencem ao meio físico, nem ao espiritual. As coisas do mundo físico causam-lhes dor, como o calor do Sol, por exemplo. Pela deformidade de suas mentes, o corpo, que conseguem artificialmente, apresenta inúmeras desarmonias. Seus pés geralmente são deformados, como patas de animais, e, com a movimentação, queimam, ardem...
- Se a vida deles é assim difícil, porque permanecem nela? – perguntei, irritado.
- Ora, Mário, sua pergunta não faz muito sentido. Observe as pessoas, os seres humanos. Em sua maioria, não estão em posições difíceis, dolorosas? E você se arriscaria a lhes perguntar por que não saem delas?
Tive que concordar que, de fato, a vida apresenta aspectos às vezes absurdos. Por que tantos seres humanos não saem do sofrimento e da dor?
- Mas – continuou ela – graças a Deus e às Leis Divinas, os seres acabam por sair da dor e do sofrimento. Todos, mais cedo ou mais tarde, o conseguem, de uma forma ou de outra. Deus não tem pressa! É preciso que o ser evolua, tome consciência de si mesmo e perceba a eternidade que tem dentro de si próprio. Essa é a finalidade da nossa amiga, a dor.
Meu interesse, naquele e nos outros dias que se seguiram, foi o de salvar aqueles espíritos da situação aflitiva em que se encontravam. Neiva prosseguiu:
- Como se não bastasse o tormento das duas mulheres, outros espíritos prejudicados pelo Coronel Salviano dos Santos se juntaram a elas. E ali estava eu, longe do meu Templo, numa cidade saturada de espíritos sofredores e em meio a um povo cheio de superstições e falsas formas religiosas. Precisava de ectoplasma, força mediúnica, ajuda que viria, principalmente, de Doutrinadores. O socorro chegou na pessoa de dois Doutrinadores que, lá de Brasília, se ligaram em mim. Mentalizei, e vi que os dois estavam se preparando para vir a Formosa, me visitar. O intercâmbio que se estabeleceu, permitiu-me captar o ectoplasma deles e, na mesma hora, fiz um trabalho para Capitano. Distraí-me com alguns afazeres, dando tempo para que os fluidos novos impregnassem os três. Você vê, Mário, de quantas armas dispomos a serviço do nosso próximo? Com aquela doutrina, ou seja, o ectoplasma de Doutrinadores, novas idéias começaram a surgir nas suas mentes, e eles, talvez, viessem a tomar consciência de si mesmos. Eu jogara algumas sementes e o fluído iria atuar como água e adubo. Capitano iria começar a pensar, por exemplo, como é que ele, com tanta força, a ponto de se oferecer para me ajudar, não dava conta de se livrar das suas antigas amadas.
Neiva fez uma pequena pausa, e continuou:
- Sua primeira reação, após meu trabalho, foi de lamentações e justificativas. Percebi que ele tinha medo de perder sua posição e que a dúvida atormentava seu espírito. Empenhada em não perder aquela oportunidade, lancei mão de mais ectoplasma dos dois Doutrinadores, cujo carro já estava quase chegando à minha porta. Fiz uma “redoma ectoplasmática” de magnético animal, enclausurando o pobre Capitano para aguardar a chegada de Pai João. Seus olhos grandes me acompanhavam por toda parte que eu ia!...
A noite já caíra de todo. Alguém nos chamava para que fôssemos jantar. Várias pessoas esperavam por Neiva, ansiosas por uma consulta.
Irritado, como era meu costume, pelo aspecto ansioso dessas pessoas, já me preparava para enxotá-las, livrar Neiva delas, mas parei, diante de um pensamento que me ocorreu: pelo meu ciúme da Clarividente, poderia enxotar os encarnados, mas como eu faria com os exus?
Esse pensamento me tornou mais sóbrio e tolerante...

D A N I E L

O Sol entrava pelas frestas das tábuas da Casa Grande, e eu pensava comigo: quando é que Neiva vai mandar consertar esses buracos? Nisso, ela entrou na sala, falando em tom de raiva, e pensei: Pelo jeito, no mínimo, matou um dos meninos...
A Casa Grande era um milagre de arquitetura e decoração. Num lote padrão de Taguatinga, felizmente um lote de esquina, era um barraco alongado e esticado pelos quatro pontos cardeais. Telhas de toda espécie, madeiras que já haviam conhecido outras situações arquitetônicas, e outros materiais. Nela viviam, exatamente, sessenta e três pessoas, incluindo o cronista. As idades variavam de um a sessenta anos, de ambos os sexos.
Uma diferença na altura do assoalho e um tabique delimitavam o orfanato e a casa de Neiva. Usava-se a palavra orfanato, mas era proibido usar-se a palavra órfão, a não ser para o Zé Órfão. Ele havia chegado junto com outros meninos e, no meio deles, havia dois chamados José. Um deles tinha perdido os pais e a turma se penalizou porque ele era órfão. Ligar a palavra Zé com órfão foi a coisa mais fácil, e daí a tradição de ser um orfanato que só tem um órfão...
Tão pronto me viu, Neiva passou do ar raivoso para o seu sorriso benevolente. Sua disciplina era assim. Gritava como se estivesse possessa, mas só exteriormente. O amor que dedicava àqueles meninos era demasiado e, para disfarçar, fazia-se, como dizia ela, de mauzona.
Sentamo-nos na sala de visitas, a única que tinha um relativo espaço livre, e onde se realizavam os bailes de sábado.
- Mário, – disse ela – não sei o que fazer com tanto menino. Não tem mais onde por. Hoje de manhã, uma mulher queria deixar os seis filhos dela de uma vez. É lógico que recusei!
- Mas, – objetei – não foi essa que você mandou Gertrudes atrás agora há pouco?
Ela disfarçou e passou a outro assunto... Assim era a Casa Grande, tão grande quanto o coração de Neiva. Sempre havia lugar para mais um.
Nisso, pára um jipe à porta, e dele desce um rapaz empoeirado, acompanhado por um menino de uns sete ou oito anos.
- A senhora é dona Neiva? – foi logo falando.
- Sim! – respondeu ela – O que o senhor deseja?
- Sei que a senhora tem um orfanato, e queria ver se ficava com esse menino.
- Que menino? – perguntou ela, e foi logo acrescentando, diante do meu olhar de mofa: – Não, não posso! Não tenho mais onde pôr. O senhor me desculpe!
Realmente, na sala, só estávamos nós três. Cheguei a desconfiar que me havia enganado, e que o homem descera só, sem nenhum menino com ele.
Nisso, ouviu-se um grito lancinante de criança, e Neiva saiu correndo para o orfanato. Daí a pouco, voltou ela, trazendo um menino pelo braço. Mirrado, calcinha rasgada no traseiro, nariz meio achatado, olhos negros e fundos, forçava para se livrar da mão de Neiva.
- É este o menino de quem o senhor está falando? Muito obrigada, pode ficar com ele! Quem vai poder com um bichinho desses? Já quase quebrou a cabeça de Manezinho, lá dentro! Não, muito obrigada! Pode levar seu diabinho...
Neiva largou o menino, que solto, começou a futucar o velho aparelho de televisão existente na sala. Meu sangue começou a subir à cabeça, tal o medo de ter que consertar, pela quinta vez, aquele heróico aparelho do tempo pioneiro da televisão.
O rapaz começou a contar sua história:
- Dona Neiva, a senhora vai-me perdoar por insistir. Sou pobre, tenho um pequeno sítio em Cavalcante, no interior de Goiás, que pertence à minha família, há muitos anos.  A terra é pobre e mal dá pra gente viver. Tinha um pessoal que morava lá há algum tempo, e eles tinham muitos filhos. O pai da família deu pra beber cachaça e, um dia, acabou morrendo na ponta de uma faca. As crianças ainda eram pequenas, e a mão deles ficou meio doida com isso. Mas iam vivendo, mesmo assim, ao Deus-dará, com as crianças soltas no sítio. Um dia, deu um acesso de loucura na mãe, e ela passou a mão num machado e matou as três meninas. Daniel, aqui, que era o menorzinho, com uns quatro anos de idade, ia ser o último a morrer, quando acudiram. Levaram a mulher para um hospício, e passei a criar Daniel junto com meus filhos. O problema, dona Neiva, é que, agora, não estou dando conta de ficar com ele. Já fui ao Juizado de Menores, mas eles não têm onde colocá-lo. Lá me disseram que a senhora iria aceitá-lo, e vim lhe pedir essa caridade. Daniel está acabando com o sítio. Já matou galinhas, porcos, e destrói tudo o que encontra. Briga com todo mundo, some no mato, e fica dias desaparecido. Canso de receber reclamações dos vizinhos e tenho medo de que, um dia desses, aconteça algo pior. Por favor, dona Neiva, me ajude!
Nisso, Gertrudes veio chamar Neiva para o interior da casa, e ela nos deixou. Nessa altura, Daniel já tinha conseguido tirar a tampa traseira do televisor, mas, para meu alívio, se desinteressou do aparelho e passou a desfolhar uma velha avenca de um vaso.
Impressionado com a história e receoso de que Neiva resolvesse ficar com o menino, fui procurá-la.
- Você está doido, Mário? É lógico que não vou aceitar esse menino! Onde é que vou pô-lo? E você acha que seria louca de colocar esse menino junto com os outros?
Ouvimos o ruído do motor do jipe, que se afastava. Respirei aliviado. Graças a Deus o homem desistira de insistir. Encaminhei-me para a sala e a primeira coisa que vi foi o televisor virado em cima da mesa, e Daniel mexendo em seu interior, com os dedinhos gretados de terra preta. O rapaz se fora e o deixara para trás!...
Passaram-se cinco anos. A Casa Grande é, hoje, apenas uma recordação, um barraco alugado em Taguatinga. Atualmente, existe um Vale do Amanhecer, e um enorme dormitório chamado orfanatão. Nele dormem uns 120 meninos, e outros tantos dormem no quartel, ou na nova Casa Grande. Ao todo, são mais de duzentos, fora os em trânsito...
José Ferreira de Brito, o seu Brito, tem a mania de abrigar meninos. Como Neiva tem a mesma mania, os dois se entendem muito bem. Todos os dias, ele chega para Neiva e diz:
- Neiva, chega de por meninos no orfanato. Eu não dou mais conta!
- Mas, Brito, – diz ela com calma – não foi você quem mandou aquela mulher aqui, hoje cedo, com aqueles três pretinhos?
- Eu? Não mandei ninguém trazer crianças pra cá!...
- Mas Brito, – diz Neiva, calma – ela trouxe até um bilhete seu!...
E assim a discussão continua, há uns quatro anos, mais ou menos, e chegamos a duzentos e tantos meninos, de ambos os sexos, de um a vinte anos!...
Oito horas da noite. No Vale do Amanhecer, gente para todo lado, médiuns de retiro com seus uniformes queridos. Gente que conversa animadamente, em todos os cantos da complexa Casa Grande. Rádios e televisores pipocam por toda parte, numa cacofonia impressionante.
Seu Brito pára o carro no pátio e desce, apalpando, com carinho, o cinto apertado de um homem que atravessa a casa dos quarenta.
Daniel se aproxima dele, e os dois se cumprimentam afetuosamente. Entram para a sala de visitas. Um homem grande e um homenzinho. Daniel tem, hoje, uns doze anos. A mesma voz um pouco agarrada na garganta, o mesmo olhar inquieto, verificando tudo que o cerca, a roupa estriada de poeira do Vale. Sentam-se ambos.
- Seu Brito – diz Daniel – a professora hoje disse que já posso ir para o ginásio. Sabe, ganhei um prêmio!
Brito afaga-lhe a cabecinha despenteada. Um visitante, sentado na sala, olha para ambos. Brito explica:
-         Daniel, aqui, é meu secretário!...


O DESAPARECIDO

- Dona Neiva, me ajude, por favor! Não agüento mais esta vida!...
A moça, aparentando ter uns vinte anos de idade, tinha o bonito semblante sulcado pelas lágrimas. A Clarividente anotou seu nome e idade, e ela começou a contar sua história:
- Dona Neiva, casei-me há três meses com o George. Minha vida, antes desse casamento, era muito sofrida. Aos quinze anos fui violentada por um desconhecido, e com isso sofri horrores. Só comecei mesmo a viver depois que encontrei George. Gostamos um do outro assim que nos vimos, mas tivemos que lutar muito para nos unir. George é filho de argentinos, e seus pais não gostam de mim. Nunca aceitaram esse casamento. Tanto que, depois de nosso casamento, eles se mudaram para a Argentina. Mesmo assim, nos deixaram o apartamento onde moramos. George formou-se em Mineralogia, e adora sua profissão. Seu sonho dourado era se formar e fazer um curso especializado no Rio de Janeiro. Eu trabalho num instituto do Governo, e nossa vida de casados começou muito bem. Logo que terminamos a lua de mel, George foi ao Rio, para fazer o curso. Infelizmente não pude acompanhá-lo, mas, como o período era curto, não me importei muito. Dois meses depois, George voltou, mas me encontrou meio adoentada. Sempre tive complicações ovarianas, e George, assim que chegou, providenciou uma consulta no hospital. O clínico geral que me examinou pediu uns exames e mandou que voltássemos daí a alguns dias. Na data marcada, voltamos e fomos atendidos pelo Dr. Celso. Entramos no pequeno consultório e ele pediu minha ficha à enfermeira. O Dr. Celso olhou a ficha e viu os resultados dos exames. Dirigindo-se a nós, nos parabenizou por eu estar grávida, já no quinto mês de gestação! George deu um gemido e cobriu o rosto com as mãos, e eu fiquei tão chocada que não consegui dizer nada. O médico ficou nos olhando, sem compreender, e George, subitamente, saiu do consultório. Voltei-me para o médico e lhe disse que deveria ter havido algum engano, pois estava casada há somente três meses! O médico ficou meio embaraçado e tornou a olhar a ficha. Pensou um pouco, e rabiscou um memorando, encaminhando-me para um ginecologista. Só então compenetrei-me do fato de que o Dr. Celso era um clínico geral e não um ginecologista. Cheia de presságios, saí em busca de George, mas não o encontrei no corredor. Busquei por todo o hospital e, não o encontrando, peguei um taxi e fui para casa. Lá chegando, vi nosso quarto todo desarrumado, e a empregada me deu o recado de que George tinha viajado. Desde então, dona Neiva, não tive mais notícias dele. Isso já faz quase duas semanas e não entendo o que está acontecendo. Tenho certeza de que tudo vai se esclarecer!
A moça desandou a chorar. Neiva prometeu fazer tudo que estivesse ao seu alcance para trazer o marido dela de volta, e lhe pediu que voltasse na semana seguinte. Continuou atendendo a outros casos e, no fim do dia, lembrou-se da moça.
Mãe Etelvina se aproximou, e contou a história dela:
Há apenas alguns anos, numa encarnação anterior, a moça se chamava Júlia e o atual George se chamava Marcos, e também eram casados.
Depois de certo tempo de casados, Marcos arranjou uma amante, e Júlia acabou por descobrir. Revoltada com o fato, procurou a companhia de outro homem, de quem também se tornou amante.
Marcos, porém, caiu em si, e decidiu romper aquela situação embaraçosa. Deixou a amante e passou a se dedicar inteiramente a Júlia, de quem não suspeitava.
Diante da atitude de Marcos, Júlia decidiu seguir o mesmo caminho, e tratou de romper com o amante. Não foi, porém, tão feliz como Marcos, pois Célio, seu amante, estava apaixonado por ela, e não se conformava com a separação.
Numa certa manhã, encontraram-se na rua, e Célio, em altas vozes, reclamou a companhia de Júlia. Justamente, nesse momento, Marcos cruzou com eles, e a situação ficou mais embaraçosa. Júlia saiu-se como pôde daquela dificuldade, conseguindo que Marcos não ficasse sabendo exatamente o que estava acontecendo. Desconfiado, Marcos fingiu sair da cidade, mas ficou vigiando Júlia.
Depois de algum tempo, cansou-se daquela vigília, e, compadecido de Júlia, voltou para o lar, convencido de sua inocência. Logo em seguida, porém, sofreu um ataque de febre perniciosa, e foi internado em um hospital, onde ficou, durante dois meses, em tratamento. Durante todo esse período, ele permaneceu semiconsciente. Finalmente, recuperada sua saúde e esquecido da quase tragédia anterior à doença, voltou para casa, ansioso por retomar sua vida de casado e amando Júlia.
Ainda enfraquecido, estranhando a ausência da esposa, foi para casa, onde uma surpresa desagradável o esperava: Júlia havia fugido com o amante Célio! Marcos não resistiu ao choque e acabou desencarnando, desamparado.
Júlia, que havia fugido diante das ameaças do amante, arrependida pelo mal que fizera a Marcos, viveu seus dias cheios de tristeza e acabou desencarnado pouco tempo depois.
Ambos haviam se endividado: Júlia, porque provocara o desencarne prematuro de Marcos, e este, porque não resistira à sedução da primeira amante, cujo nome era Marta, e conduzira Júlia ao abismo. A culpa de Marcos era bem menor que a de Júlia, que, com seu comportamento, pusera em perigo, inclusive, a vida de Célio, pois, em dado momento, Marcos pensara em matar ambos.
No astral, Marcos, evoluído e já considerado um trabalhador espiritual, atrasava-se devido ao plano onde estava Júlia, menos evoluída, por ser seu companheiro espiritual, almas afins.
Ambos pediram nova oportunidade encarnatória, e, assim, vieram parar em Brasília, onde aconteceu o fato.
Nada podemos fazer por eles. Júlia e Marcos, nas personalidades de Maria e George, terão que curtir sua dor, até o refazimento total de seus espíritos. Maria, mais atrasada, com mais culpas do passado, irá sofrer mais. George está com os pais, na Argentina, e praticamente já se esqueceu de Maria, pois se integrou na vida junto aos pais.
Mãe Etelvina encerrou sua narrativa.
Maria de Justo, 19 anos, compareceu, uma semana depois, ansiosa pela resposta de Neiva. O diálogo foi cheio de interrupções e frases vagas. Poderia a Clarividente dizer-lhe a verdade cármica? Iria isso trazer alguma luz àquele espírito sofrido e conturbado?
- Olhe, – disse ela a Maria – ainda não consegui muita coisa. Estou pedindo a Deus pelo seu marido, para que ele volte para o lar. Aconselho-a a trabalhar espiritualmente. A senhora tem muita mediunidade, e isso pode ajudar no seu caso.
 Maria saiu, comentando com uma amiga:
- Não sei não, tenho a impressão de que dona Neiva não me disse tudo que sabia. Você acha que George volta?
-         Não sei!... – respondeu a amiga.

TRANSPORTE ESPIRITUAL

         A jovem senhora visitava o Vale do Amanhecer com freqüência, e, com um desembaraço que nos deixava encabulados da nossa ignorância iniciática, gostava de falar dos seus transportes. Causava inveja a facilidade com que ela viajava para regiões longínquas da Terra e de outros mundos. Eu a escutava fascinado, um tanto invejoso da sua facilidade, pois eu nunca conseguira fazer a mais prosaica viagem, e nem sequer tentara... Ela nos visitara no dia anterior, e eu meditava sobre quanta coisa me restava aprender na vida espiritual, quando Neiva chegou ao meu escritório, com ar cansado.
         - Não vai me dizer que você andou viajando – disse eu à guisa de cumprimento.
         - Como é que você sabe? – respondeu ela, surpresa – De fato, esta noite, tive um transporte pesado. Meu Deus, como sofri!...
- Mas, – perguntei – você se transportou, viajou no outro mundo, no espaço?
- Não sei o que você chama de outro mundo. – disse ela – Para mim tudo é uma coisa só, é logo ali... – e esticou o lábio inferior, imitando o clássico gesto caipira. Em seguida, voltou ao ar de tristeza e cansaço. Fiquei calado, à espera do que me fosse contar.
- Você se lembra – começou ela – daquele cearense que me procurou ontem, um sujeito de uns quarenta anos, amorenado?
Vasculhei minha memória, mas não consegui me lembrar do homem. Ansioso por ouvir o que tinha para me contar, respondi que me lembrava. Queria saber mais sobre as viagens.
- O nome dele é Alcino, – prosseguiu Neiva – um candango igual a esses muitos que vieram para Brasília, em busca de fortuna. Fazia dois anos que ele havia deixado a mulher e a filha no Ceará, com a clássica promessa de ir buscá-las mais tarde. Aqui ele trabalhou e conseguiu erguer um barraco na Vila do IAPI. Só que esqueceu da família e nem sequer deu notícias a ele durante todo esse tempo. De fato, ele havia deixado sua terra por embaraços e intrigas, resultantes da miséria em que vivia. Talvez cansado da vida solitária que estava levando aqui, resolveu pedir as contas na empresa em que trabalhava. Conseguira juntar mais de dois mil cruzeiros. De posse do dinheiro, tornou-se indeciso sobre o que faria. Começou a pensar na mulher e na filha, e resolveu retornar ao Ceará. Com todo aquele dinheiro, pensava, poderia dar uma demonstração do seu valor àqueles que o desprezaram e, quem sabe, ser bem recebido pelos que abandonara. Porém, o impulso não era suficientemente forte, e resolveu consultar-me. Quando se sentou à minha frente, senti um calafrio. Olhei nos seus olhos e vi a morte neles!
- A morte? – perguntei – Que é isso!...
- Sim, – disse ela – a morte! De pronto, Mãe Etelvina apareceu e começou a me falar de Alcino. Enquanto isso, ele ia desfiando sua história. Pelo que ela dizia e pelo que ele falava, o quadro ia ficando absolutamente nítido. Na trajetória cármica daquele pobre candango, havia uma promessa de morte, um assassinato. Seu destino provável era o de assassinar alguém, talvez a mulher, talvez o homem com quem ela vivia atualmente, mas perderia a vida nesse episódio doloroso, pois o seu tempo, na Terra, havia chegado ao fim.
- E aí, – perguntei – o que você fez?
- Estava deveras penalizada. Longe da família, sozinho na via hostil da Brasília em obras, ele havia evoluído muito. Sentia saudades da esposa e da filha, a quem poderia oferecer, agora, um pouco mais de conforto. Mas, pelo que dizia Mãe Etelvina, já era tarde. A esposa, cansada de esperar, com problemas financeiros, juntara-se com outro homem, justamente o que tinha reajuste com Alcino de outras encarnações. E o pior é que estava grávida. Realmente, agora era tarde! Meu Deus, o que poderia fazer por ele? Olhei para Mãe Etelvina, que meneou a cabeça de forma negativa. Reagi contra aquela situação de tristeza, e disse a ele:
- Meu filho, vou ajudá-lo a resolver o que você fará com esse dinheiro. Vá para sua casa, e confie em mim. Quando é que você pretende partir?
- Amanhã! – respondeu ele.
Neiva continuou a narrativa:
- Dei-lhe, então, uma florzinha de plástico, daquelas que tenho em minha mesa. Você sabe, não é, Mário, essas flores preparadas, que chamamos de “príncipe”, e ele se foi. Nessa noite, mal tinha me deitado, senti as vibrações de Alcino. Dormi um sono agitado, em que me debatia com o problema dele. Por volta das três horas da madrugada, senti um puxão violento, seguido do alívio imediato ao me libertar do corpo. De pronto, percebi que as vibrações de Alcino me arrastavam para perto dele. Fora do corpo eu sou totalmente consciente, e procurei controlar minhas emoções. Encaminhei-me para os lados do IAPI, e comecei a procurar o barraco de Alcino. Creia-me, Mário, não foi fácil. O quadro de uma favela na madrugada é algo de estarrecer. Havia chovido, e as ruas imundas, estavam encharcadas pela água que corria, levando lixo para os córregos. As vibrações foram aumentando, e percebi que estava na rua de Alcino. Ouvi, então, um canto cadenciado e percebi que era um ponto de macumba. Identifiquei o ponto do Exu Ventania, e a voz era a de uma mulher. Aproximei-me do mísero barraco e vi uma mulher magra, de uns quarenta anos, que fritava uns bolinhos num fogão de carvão. Enquanto lidava com as frituras, cantarolava o ponto de Ventania.
- De novo os exus! – interrompi – A toda hora você topa com eles, Neiva!
- Sim, meus Mestres se preocupam muito com eles. Há sempre um plano em andamento, na Espiritualidade, visando ajudá-los. Não esqueça, Mário, de que são espíritos filhos de Deus, como nós. Veja o caso de Ventania, por exemplo. Sua falange é poderosa e enorme, e ele procura se evoluir através da assistência que proporciona às pessoas de sua afinidade. Tem uma força tremenda, e usa inúmeros aparelhos em seus trabalhos.
- Aparelhos? – perguntei, sem entender.
- Sim, aparelhos, equipamentos. – respondeu – São máquinas complicadas, fabricadas com magnético animal, que custam caríssimo.
- Explica melhor! – implorei – Para que servem esses aparelhos e porque precisam deles?
- É simples, Mário. Já lhe disse que os exus são espíritos cultos, inteligentes, mas sua inteligência e sua cultura são apenas materiais, do plano mental concreto, do raciocínio que não alcança a nuança espiritual. Mário, é preciso que entenda bem, pois isso é muito importante! O mundo da mente humana, da psique, da psicologia, é cheio de recursos extraordinários, mas tudo gira em torno do plano físico, regulado pelas leis que regem esse plano. O Homem, deslumbrado com esses poderes, se enche de orgulho, de auto-suficiência, e perde as possibilidades de contato com o outro plano, o plano do espírito! A diferença entre os dois planos é tão sutil que a mente carregada de conclusões racionais não a percebe. É o caso dos exus. Vivendo no plano etérico, o exu lida com a maleabilidade molecular desse plano. Lida com a matéria-prima, que são o ectoplasma humano e os fluidos animais da Natureza, e com ela faz a base da sua vivência e da sua riqueza. É como o Homem encarnado no plano físico, que baseia sua vida na matéria-prima da Natureza, como o petróleo, os minerais, a terra etc. Quem controla a matéria é senhor da riqueza, é mais forte ou menos forte socialmente, dependendo da sua capacidade de obter e controlar essas riquezas. Um Homem que tenha mais dinheiro, tem mais equipamentos, não é verdade? Assim são os exus. No etérico, existem escolas, indústrias e comércio, da mesma forma que na Terra. Não é bem igual à Terra, onde o plano é mais natural, mais harmônico, e os seres estão em um plano evolutivo definido. Como poderei lhe explicar? É como a vida na Terra deformada, desfocalizada, cheia de contrastes violentos. Na Terra, o ódio e o amor se equilibram. No mundo dos exus, predomina o ódio.
- E para que servem esses aparelhos? – tornei a perguntar.
- Servem para muita coisa. O Exu Ventania, por exemplo, tem um aparelho que o torna invisível no seu mundo, e se orgulha muito dele, como qualquer cidadão se orgulha do seu carro último tipo.
- Mas, – tornei a insistir – se eles são espíritos, como você quando está fora do corpo, não precisariam de aparelhos para se locomover. Para citar um exemplo, você foi à Vila do IAPI pelo simples pensamento. Você pensou, e já estava lá. Os espíritos pensam e, pronto, já se acham onde quiserem, até mesmo em outros mundos, não é verdade?
- Sim, Mário, e é justamente aí que quero que perceba a diferença sutil de que falei. Envolvidos no pensamento materializado, eles não sabem que podem se transportar facilmente pelo pensamento. Simplesmente, eles não concebem, não percebem a realidade. Entende, agora, a diferença entre a apreensão espiritual e a apreensão intelectual? Nós nunca fazemos aquilo que não concebemos, de que não cogitamos. E não pensa você que eles não tenham notícias dessas coisas, das coisas do espírito. Eles, simplesmente, as negam e não acreditam nelas! Procuram, sempre, uma explicação racional, e nunca conseguem entender. Como não entendem, negam! Como negam, não possuem, não vivem essas coisas...
- Mas, – arrisquei – de tanto verem espíritos iluminados, eles devem desconfiar que existem outros meios, não é verdade?
- Não, Mário, – respondeu ela pacientemente – eles não vêem os espíritos iluminados, eles não penetram no plano de luz e, quando conseguem ver algo, atribuem este fato a um fenômeno que urge descobrir. É por isso que estudam com afinco! Mas estão sempre presos no seu círculo vicioso, da mesma forma que os homens que querem descobrir Deus, a alma, o espírito, nos seus laboratórios e com seus aparelhos. E há outro fato: o controle espiritual. Os Mentores simplesmente não os deixam penetrar nessas forças do espírito, porque tais forças seriam desperdiçadas na sua filosofia egocêntrica. Poderes só são dados a quem se desprende do egoísmo, a quem se coloca a serviço do Amor Crístico. É por isso, Mário, que você às vezes vê uma criatura simples, sem cultura intelectual, com poderes extraordinários, e, paradoxalmente, vê portentos intelectuais que são verdadeiras nulidades espirituais. Há, ainda, um detalhe, que é preciso que você entenda, Mário. O Homem encarnado tem muito mais poderes que os exus! Na verdade, essa classe de espíritos assedia, de preferência, homens inteligentes, cultos, religiosos, porque extraem o conhecimento deles! É nessa... como é que você diz?
- Simbiose. – disse eu.
- Pois é, nessa simbiose, o Homem encarnado e os exus de entendem, embora os dois estejam se enganando sem saber! Na verdade, se não fosse a cupidez humana, em aproveitar o que julga ser poder sobrenatural dos exus, esses espíritos se evoluiriam mais depressa, sairiam da triste situação de marginais entre dois planos! É por isso que Moisés proibia o intercâmbio com os espíritos e todas as religiões o proíbem. É nisso, também, que a Ciência Espiritual difere fundamentalmente das religiões. Não é o intercâmbio com os espíritos que é perigoso, mas, sim, o tipo de intercâmbio. Em nome da Luz Crística, do Amor e do Perdão, nós consideramos os exus, como todos os espíritos, objeto de amor e de carinho. Nada queremos deles, nada eles podem fazer por nós, a não ser nos dar a oportunidade de exercer nossa fé, nossa capacidade missionária, nosso amor. Não temos o direito de nos furtar a ter relações com eles e nem de fugir deles.
- Acho que os sacerdotes têm razão quando proíbem esse intercâmbio. – disse eu – Parece-me perigoso se meter com eles.
- Mas, Mário, – tornou ela – esse pensamento é tão negativo quanto o dos próprios exus. Diga-me uma coisa: você considera perigoso se meter com portadores de doenças contagiosas?
- Sim. – titubeei.
- É, mas outros se metem com eles, tratam deles, curam-nos e, na verdade, médicos e enfermeiros não param de trabalhar para ajudá-los, não é verdade? O problema que se apresenta é o mesmo que o dos exus. É o tipo de intercâmbio. Você se lembra, há muito tempo, quando houve um escândalo em nosso País, a respeito de um grupo de pessoas que arrecadava dinheiro em nome dos cancerosos? Pois é, o problema da Ciência Espiritual com os exus é o mesmo. Só que não é um problema de dinheiro ou de poder. É um problema de honestidade iniciática, da interpretação correta do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Desculpe, Neiva. Desviei-a demais do assunto de Alcino. Com essa preocupação com os exus, a gente até perde o fio da meada!
- Não, Mário. É bom que vejamos todas essas coisas. Não se esqueça de que estamos no limiar do Terceiro Milênio, e essas coisas terão que ser aprendidas por todos. Mas, voltemos ao nosso amigo Alcino. Enquanto observava a mulher fritando os bolinhos, vi quando Ventania passou rápido, atraído pelo ponto. Abandonei a cena e tive minha atenção despertada por um alarido noutro barraco. Um homem aleijado, com as pernas deformadas, sentado num carrinho tosco de madeira, gritava colérico com um menino de uns doze anos de idade, e procurava atingi-lo com uma vara, tentando espancá-lo. Gritava para que ele acordasse, pois iriam perder a hora de ir para a feira, que já estava se formando e, se demorassem, iriam perder seu lugar lá. Meu coração se confrangeu com aquela cena de miséria e lembrei-me da minha missão ali: encontrar Alcino. Mesmo assim, não pude evitar de ver outras cenas. Casais se entrelaçavam em desvãos escuros. Um homem comentava com a mulher a demora do caminhão que o conduziria à obra onde trabalhava. Num outro barraco, um casal discutia com tristeza. Aproximei-me, e vi que se tratava da despedida de amantes clandestinos. A esposa do homem chegaria naquele dia, vinda do Nordeste, e ele teria que se juntar a ela, abandonando a amante, de quem gostava realmente. Sempre os reajustes, os carmas! Por fim, cheguei ao barraco de Alcino. O choque foi terrível, Mário. Cheguei no momento preciso em que um crioulo forte enfiava uma faca nas costas de Alcino, e esse tombava, morto! Estarrecida, olhei aquela cena terrível e me senti paralisada pelo terror. O crioulo, calmamente, limpou a faca na coberta da cama, e, abrindo a mala de viagem de Alcino, puxou, do fundo, um maço de notas, pondo-se, tranqüilo, a contar o dinheiro. Fiquei em desespero. Tinha que fazer alguma coisa. Aquilo era horrível demais! O pobre Alcino havia confiado em mim, e eu lhe prometera proteção. Será que havia falhado em minha missão? Súbito, algo se passou em minha mente. Lembrei-me da noite terrível que havia passado, cheia de pesadelos. Houve uma movimentação e, num relance, percebi, pela minha experiência, que eram os Médicos do Espaço fazendo o desencarne de Alcino.
- Desencarne? – perguntei – Que história é essa?
- Ora, Mário, no desencarne acontece o mesmo que no nascimento: exige cuidados médicos dos dois planos.
- Nos dois planos? Quer dizer que os médicos da Terra ajudam a despachar as pessoas?
- Mário, você é mesmo irreverente! É lógico que eles não ajudam a despachar, como você diz. Aplicando todos os recursos, na tentativa de salvar o paciente, eles curam muita coisa antes que o paciente morra. Muita dor e sofrimento são, assim, poupados. O paciente que morre bem assistido chega ao outro lado com muito menos trauma e muito menos defeitos no seu perispírito. Na verdade, embora os médicos da Terra não saibam disso, eles trabalham sempre em equipe com os médicos espirituais, cada um atuando no seu plano. Ambas as equipes, uma sabendo e a outra sem saber, obedecem aos ditames da Lei Cármica, e o paciente desencarna no momento previsto. Todo desencarne é feito antes da morte física. Quando chega a hora, os Mentores e Guias tomam as providências necessárias e o “parto” para o outro lado tem início. Geralmente, dura de três a quatro horas. Mas, não existem dois desencarnes iguais. Cada caso exige atenção especial. Há muita coisa que gostaria de lhe explicar a esse respeito, mas fica para outra ocasião.
- Só uma coisa. – disse eu – E no caso da morte violenta, de desastre?
- É a mesma coisa. Muitas vezes a pessoa está dirigindo calmamente seu carro e seu desencarne já está sendo feito. Logo adiante, o carro capota e ela morre, às vezes inexplicavelmente. Isso mostra, inclusive, porque certas pessoas saem vivas de desastres terríveis e outras morrem de uma simples batida.
Neiva fez uma pausa rápida, e continuou:
- Voltemos ao Alcino. Eu continuava ali, perplexa, sem saber o que fazer. Sabia, agora, que fora atraída pelo subconsciente dele. Pressentindo sua morte, e não tendo para onde apelar, lembrara-se de mim. Com o “príncipe” que lhe dera, eu o colocara sob a proteção da Magia, e ele teve, assim, muito maior assistência do que teria se não fosse esse fato. Mais calma, fiquei observando a cena, e vi que o crioulo havia deixado cair uma carteira com sua fotografia. Nesse momento, a mulher dos bolinhos parou na porta do barraco e gritou qualquer coisa. O crioulo abriu parcialmente a porta, escondendo a cena do crime com o próprio corpo, e comprou uns bolinhos dela. Pagou com duas notas de alto valor, e a mulher deixou escapar uma exclamação de surpresa. Pegou o dinheiro e disse:
- Puxa vida, hoje é meu dia de sorte! É só eu invocar o “seu” Exu Ventania e ele me dá sorte! – e olhando para o crioulo, falou: - Puxa, que cara! O que aconteceu com você?
- Nada. – respondeu o crioulo – Essas notas são pro seu exu. Compre umas velas e as ofereça para minha proteção. Preciso de muita sorte, hoje.
O crioulo fechou a porta atrás de si, e sumiu na madrugada. Já eram umas seis horas da manhã, e eu estava ali, sem saber o que fazer, quando percebi a presença de Mãe Tildes.
- Minha mãe! – exclamei – Que coisa horrível! Não sei o que estou fazendo aqui. Sei que falhei com esse pobre homem que confiou em mim, e eu nada fiz para evitar a sua morte!
- Não, minha filha, – disse ela – não é assim. Na verdade, sua presença aqui foi para ajudar no desencarne de Alcino e impedir que aquele crioulo continue a cometer seus crimes. Esse é o terceiro homem que ele mata para roubar e, se não for impedido, irá matar outros. Sua missão é a de entregá-lo à Justiça.
- Eu? Como? E o pobre do Alcino? O que aconteceu com o espírito dele?
- Você não pode ver, minha filha, mas o espírito dele está ali, a um metro acima do cadáver. Nesse momento, ele está recebendo todo o acervo da encarnação que terminou. Ficará assim, próximo ao corpo, até se encharcar de todo. Quando a última partícula for absorvida, os Mentores dele levarão seu espírito para Pedra Branca, e o corpo entrará em decomposição. Seu ectoplasma está sendo usado, neste instante, para os outros atos deste triste drama.
Naquele momento, o garoto do mendigo veio bater à porta, mas percebendo-a entreaberta, empurrou-a, como quem já está familiarizado, e deu um grito, recuando. Formou-se uma algazarra na porta do barraco do mendigo, quando o menino contou o que encontrara, com muita gesticulação e gritos. O garoto saiu correndo e, pouco depois, retornou, acompanhado de uns policiais, que entraram no barraco de Alcino e iniciaram seus exames de rotina, como quem já está acostumado com essas cenas. Enquanto os policiais trabalhavam, Mãe Tildes me explicou:
- Veja, minha filha, o que são os reajustes e os laços cármicos. Esse cadáver só seria descoberto quando estivesse putrefato. Nessa altura, o crioulo já teria matado outros e teria fugido. Esse garoto estava habituado a receber uma esmola de Alcino todos os sábados, e é por isso que veio aqui.
- E esse garoto, Mãe Tildes, que destino triste o dele, por ter que servir a um mendigo tão irascível!...
- Esse garoto, minha filha, é um espírito evoluído, que só veio para passar por essas provas e servir de elemento de ligação na justiça ao crioulo, que esta madrugada, tramou a morte de sua amante em seguida ao assassinato de Alcino. Logo esse menino irá desencarnar e vai se juntar a Zenóbio, seu pai, que é um missionário de Mayante.
Enquanto Mãe Tildes conversava comigo, os policiais acharam a carteira do crioulo junto ao corpo de Alcino.
- Vejam, – disse um deles – este é aquele cara que passou por nós, há pouco, e parou, à espera do caminhão da construtora, comendo bolinhos. Vamos localizar a empresa e o bicho está no papo!
Ainda traumatizada e um pouco cansada daquilo tudo, lembrei-me de perguntar a Mãe Tildes sobre a esposa de Alcino, se ela não estaria incluída naquele reajuste, se ela não teria, também, um pouco de culpa.
- Não, minha filha, ela não tem qualquer culpa. Durante muito tempo, foi evitado um mal maior, pois Alcino iria se endividar ainda mais. Se ele voltasse para o Ceará, iria se defrontar com o velho inimigo, e ambos se matariam. Graças à sua interferência e à fé que Alcino depositou na sua Doutrina, o carma se cumpriu em melhores condições.
O dia já clareava, e eu voltei para minha casa, para o meu corpo. No caminho, passei por cima da obra onde o crioulo trabalhava, e vi um carro de radiopatrulha parado e os policiais conduzindo-o, preso. Fiz uma prece silenciosa em benefício daquele espírito atribulado, e voltei ao meu sono normal.

MORTE COM HORA MARCADA

Mais um dia de consultas de Neiva. Desde as dez horas da manhã, o povo se comprimia no recinto do Templo reservado ao público, e a impaciência era sensível no ambiente. Em sua maior parte, os consulentes eram gente simples. Às seis horas da manhã já haviam formado fila diante da porta do Templo, em busca de uma ficha, e o número de pessoas a serem atendidas já se havia esgotado.
Um carro parou bem junto ao Templo, e dele desceram algumas pessoas bem vestidas. Uma senhora de certa idade, duas moças e um rapaz. A senhora demonstrava ser pessoa de bom trato, enquanto as moças e o rapaz usavam calças coloridas e cabelos longos. Tão pronto se aproximaram da porta do Templo, formou-se um clima de hostilidade. A senhora, demonstrando certa familiaridade com o ambiente, abriu caminho por entre o povo e se aproximou da moça que atendia os candidatos à consulta. Falou com voz baixa e a moça foi até à Clarividente, voltando daí a poucos instantes. Pediu licença aos que obstruíam a entrada interna, e conduziu os quatro para um banco próximo ao local onde Tia Neiva consultava. Um murmúrio se levantou no meio do povo. Uma pessoa menos paciente fez um comentário áspero. No meio do vozerio que se formou, distinguiam-se as palavras grã-finos, ricos e termos semelhantes. Neiva levantou-se, e se voltou para o povo, que se calou de pronto. De pé, sem nada dizer, ela ficou olhando para aquele povo simples, todos de olhos baixos, e por fim falou, pedindo que tivessem paciência. Disse que todos seriam atendidos e que a família que acabava de ser admitida tinha um problema muito mais sério do que os deles. O povo se acalmou, e o dia de consultas prosseguiu normalmente.
Eu me havia perturbado com a cena, e sentia certa irritação. Todo dia de atendimento surgia esse problema. As pessoas mais simples, geralmente moradores das proximidades, chegavam de madrugada, e absorviam todas as vagas. O pessoal de Brasília, quando chegava, já não conseguia lugar. Eu já havia estudado várias maneiras, mas nenhuma dava resultado, sempre surgia alguma perturbação.
As consultas terminaram cerca de oito horas da noite. Meus nervos estavam à flor da pele, e Neiva sentiu meu estado. Após a refeição frugal, ela me perguntou o que eu estava sentindo. Aí, explodi, e fui dizendo:
- É esse seu atendimento, Neiva. Precisamos dar um jeito nisso. Toda hora tem enguiço com esse pessoal de Brasília. Por que eles não vêm cedo, como os outros?
- Calma, Mário, não se preocupe muito com isso. Deixe estar que dou um jeito com minhas meninas. Isso é assim mesmo. Aos poucos, o povo vai aprendendo. Você parece que também está irritado com os grã-finos! Já se esqueceu da lição de Seta Branca?
- Que lição? – retruquei, ainda irritado.
E ela, remexendo com o garfo a comida esquecida no prato, foi-me lembrando as palavras do Mentor. Aos poucos, fui-me acalmando, e meu espírito se encheu de admiração pela sabedoria daquele excelso espírito. A lição de Seta Branca foi muito simples. Ele disse:
- Meus filhos, é preciso ter caridade para com os ricos, pois suas vidas são mais difíceis que as dos pobres. Estes já têm tudo de que precisam para sua evolução, pois a própria condição de pobre lhes dá isso. A rudeza da sua vida não os deixa sentir os problemas com maior intensidade. Mas, o Homem que recebeu uma educação, tem uma certa finura e sensibilidade, esse sofre muito mais. Não quero que vocês o submetam a humilhações. Você sabem o que significa, para uma pessoa educada, disputar um lugar para ser atendido por vocês? É preciso, portanto, dar mais atenção a eles. Por que submeter uma pessoa fina, educada, limpa, à humilhação de sentar-se no mesmo banco com uma pessoa grosseira e cheirando mal? O pobre não se sente muito mal ao sentar-se nesse banco, mas o rico sente. Vocês já repararam como o homem rico de Brasília tem dificuldades em encontrar um lugar para se tratar? Os hospitais de Brasília nivelam todos quase no mesmo plano. Por isso, quero que vocês, no futuro, construam um hospital onde o rico possa ser tratado com o conforto que merece. E há, ainda, as tradições humanas. Convencionou-se que a caridade é para os pobres, os miseráveis, e se faz disso uma indústria. Essa é uma idéia muito material da caridade! Até essa palavra está tão desvirtuada que prefiro que a usem o menos possível. Todos merecem ser bem tratados, e não quero que se demonstre ressentimento a uma pessoa, só porque ela tem um carro e um padrão de vida melhor. Lembrem-se de que vocês conhecem a precariedade da existência na Terra. O homem que hoje é rico e poderoso, ontem foi, talvez, um pobre miserável. E o pobre de hoje foi, talvez, o rico que ontem desperdiçou sua fortuna e oprimiu outros. Todos devem ser bem tratados, mas cada um merece atenção de acordo com seu padrão!...
Quando ela terminou, meus pensamentos estavam muito modificados a respeito desse  assunto. Neiva, então, contou um caso que se passara há alguns anos, na antiga UESB, que bem demonstra o que Seta Branca queria dizer:
- Mário, você não conheceu a UESB. Lá é que a pobreza se concentrava, nos seus aspectos mais tristes. Meio alqueire de terra de cerrado e água escassa. Beira de estrada, a meio caminho de Anápolis, próximo a Alexânia. Quando começamos, Brasília ainda estava em obras e quase não havia assistência hospitalar. Os pobres e desajustados, que em grande quantidade vinham para cá, atraídos pela miragem de um futuro melhor, acabavam por procurar socorro na UESB. Nossas construções eram todas de barro e cobertas com palha. Todos os dias, uma verdadeira multidão se concentrava lá. Vinham a pé, de carroça, a cavalo, ou desciam dos ônibus que faziam a linha de Brasília. Portavam as moléstias mais terríveis e muitos pediam para ficar, pois não tinham para onde ir. Improvisamos um hospital, à nossa maneira, e tratávamos todos os tipos de doenças. Predominavam os problemas mentais. Trabalhávamos dia e noite, sem parar. Eu atendia numa pequena palhoça, bem no centro da comunidade. Certa tarde, as coisas estavam particularmente difíceis. Como você sabe, Mário, aquela concentração de pessoas desajustadas formava tremendas cargas espirituais negativas. A par do simples atendimento, tínhamos que manter o ambiente psíquico em constante renovação. As cargas, às vezes, pesavam demais e, até darmos conta da limpeza, o ambiente permanecia pesado. Naquela tare, as coisas estavam dessa maneira. O povo esperando nos arredores de minha cabana, estava impaciente e, a toda hora, as meninas que me ajudavam tinham que acalmar pessoas. Nesse ambiente de tensão, chegou um vistoso carro Simca, e dele desceram duas senhoras em traje de viagem, demonstrando serem pessoas de posses. Tão logo localizaram Jesualda, minha pequena assistente, foram logo dizendo que queriam falar com dona Neiva, mas que dispunham de pouco tempo, e queriam ser atendidas logo! É fácil imaginar a impressão que isso causou entre os que esperavam, alguns já há muitas horas. Levantou-se um murmúrio de protesto. Jesualda pediu-lhes que aguardassem um instante, e correu até mim, pedindo instruções. Meu primeiro impulso foi o de mandar dizer àquelas senhoras que teriam de esperar, pois havia pessoas necessitadas a serem atendidas. Mas, nisso, Mãe Etelvina me mostrou, de relance, o quadro delas, e fiquei horrorizada! Mandei que entrassem de imediato.
- E o povo não protestou? – perguntei.
- Sim, a gritaria entre os que esperavam foi grande. Só nossa posição moral, que impunha muito respeito, evitou que acontecesse algo pior. Alguns se levantaram e saíram dizendo as piores coisas a meu respeito. Ouvi distintamente quando uma mulher disse ser eu uma bajuladora de grã-finos, e outras coisas desagradáveis. Um homem da roça, cujo apelido era Bodinho, que há muito vinha se tratando conosco, desandou a falar grosserias e só parou quando um de nossos médiuns lhe pediu. Apesar de tudo, fiz entrar as duas mulheres, que se sentaram diante da minha pequena mesa, e se apresentaram. Walda, 26 anos, morena esbelta, muito bonita, descendente de tradicional família pernambucana, e Elza, mais jovem. Ambas eram casadas com comerciantes. Elza havia se casado com um irmão de Walda, residente em Brasília. Walda morava em Pernambuco, e tinha vindo, com o marido e uma filhinha de 5 anos, conhecer a nova cunhada. Enquanto falavam, eu via desfilar diante dos meus olhos um quadro tenebroso: Walda, que ali estava diante de mim, saudável, bonita, tinha, apenas, mais algumas horas de vida! Percebia sua inquietude e, procurando discernir o que fazer, comecei a falar de sua filhinha. Seus olhos se encheram de lágrimas e perguntou se a menina ia ser feliz. Respondi afirmativamente, e lhe disse que ela estava passando por um sério perigo, iria sofrer um desastre! Enchi o quadro com uma porção de coisas sem importância, procurando evitar ter que dizer qualquer mentira. Walda, porém, estava completamente fora da realidade. A única possibilidade que eu via era a de detê-la comigo. Mas como? Se ela ficasse, talvez nada lhe acontecesse. Mas, como inculcar numa pessoa, naquelas condições, uma Doutrina? Diante das minhas reticências, Walda começou a se impacientar e a me desafiar. Por fim, levantou-se e disse:
- Não tenho medo, pois não acredito que Deus deixe acontecer algo ruim comigo. Vivo fazendo caridade aos outros, e não faço mal a ninguém...
Neiva prosseguiu:
- Meu coração apertava cada vez mais. Ali estava aquela moça, cheia de cuidados com o futuro, prestes a morrer, e eu sem poder fazer nada por ela! Começava a não entender mais nada! Fui tomada de terrível perturbação, e quase perdi os sentidos. Nem reparei quando elas se levantaram para sair, e Walda, estendeu a mão, despedindo-se, e me perguntando se eu havia visto somente o desastre. Atraída pelo tumulto, chegou Mãe Neném, nossa presidente, e que respondia pela maior parte dos assuntos da UESB. Ainda perturbada, diante de Walda, vi quando Elza se apresentou à Mãe Neném, e passou a lhe explicar a razão da vinda delas. Elas vinham de Brasília, em direção a Goiânia, e Walda começara a se sentir mal, pedindo que parassem ali. Embora Elza conhecesse a cunhada havia pouco tempo, achou-a esquisita e diferente, e não teve dúvidas em atender o pedido dela. Já havia ouvido falar da UESB, e achou que seria até oportuno, pois ela também queria conhecer Tia Neiva. Agora, porém, se sentia meio sem jeito, diante da atitude da cunhada com dona Neiva. Depois que elas saíram, fui até a porta da cabana e vi o Simca se afastando – o mesmo carro que vira no desastre em que Walda iria perder a vida!
Após pequena pausa, Neiva continuou:
- Na primeira folga, para tomar um ligeiro lanche, Mãe Neném chegou perto de mim e perguntou se aquela moça estava condenada. Admirei-me da sua intuição, e confirmei-lhe a suspeita. Ficamos as duas tristes e caladas. Enquanto tomava um café, pensava no que acabara de acontecer. Pela minha experiência, os Médicos do Espaço já tinham feito o desencarne dela. Geralmente, quando isso acontece, a pessoa fica meio apática, embora não perca a lucidez. Falei com Mãe Neném que tinha certeza de que Walda fora atraída até nós para ter um desencarne melhor. Infelizmente, nada pudemos fazer, a não ser ajudar o espírito dela.
- E o que você viu no quadro dela? – perguntou Mãe Neném.
- Vi, Mãe Neném, que Walda e Elza foram irmãs, numa encarnação recente. Walda chamava-se Valéria, e Elza chamava-se Cláudia. Pertenciam a uma família paulista, muito rica. Valéria – a Walda de hoje – se casou com um rapaz chamado Marcelo. Depois do casamento, Marcelo descobriu que amava Cláudia – a atual Elza – , que era a mais velha das duas irmãs. Inconformados coma situação e tomados de paixão, Cláudia e Marcelo tramaram a morte de Valéria. Para a execução de seus planos, se aliaram com uma camareira. Aproveitaram uma ocasião em que Valéria estava distraída, num balcão do apartamento onde moravam. Empurraram-na, e ela esfacelou-se lá embaixo. O crime não foi descoberto, e Marcelo casou-se com Cláudia, vivendo muito tempo em relativa felicidade. Terminado o tempo na Terra, foram todos recolhidos no astral, onde a Lei de Causa e Efeito determinou o reajuste. Preparados pelos Mentores e tendo passado pelo sono do esquecimento, nasceram e cresceram até o momento dos encontros e reajustes. Marcelo, hoje um comerciante de Pernambuco, de nome Josué, conheceu Walda, a antiga Valéria, sua vítima do passado, com quem se casou. Elza, a antiga Cláudia, sua cúmplice de ontem, casou-se com um irmão de Walda, entrando, assim, na intimidade da família. Josué e Walda tiveram apenas uma filhinha, hoje com 5 anos. Essa filha é, justamente, a camareira que, na ocasião, ajudou a matar a antiga Valéria, que se tornou sua mãe atual.
- Não estou entendendo muito. – objetei – Se essa moça já foi vítima em outra encarnação – parece-me que morreu muito jovem – , por que iria morrer jovem novamente? Por que não a outra, a antiga Cláudia, ou, então, a filha ou, ainda, o atual marido?
- Mário, – respondeu ela – parece que você não compreende que, na morte, sofrem mais os que ficam! Repare nas pessoas quando morre alguém da família. Conforme o tipo de relação que existia entre elas, as pessoas que ficam é que sofrem mais! O espírito desencarnado, se cumpriu seus reajustes, se pagou suas dívidas ou se as cobrou, consegue seu encaminhamento para os planos espirituais, e não sofre.
- Não sofre? – perguntei – Como não sofre, se ele ama as pessoas que deixou?
- Ter saudades, amar ou ter qualquer outro sentimento por um ser encarnado, não significa necessariamente sofrimento para o espírito, Mário. Lembre-se de que o espírito, liberto das limitações da personalidade transitória, vê a vida dos espíritos que ama, na dimensão transcendental, no seu todo, e compreende o porquê das coisas que estão acontecendo. Justamente, esse é o ponto-chave do esquecimento do espírito encarnado. Ele sofre porque não sabe. Quando ele aprende, quando ele fica sabendo, por processo íntimo seu, dos porquês da sua vida, ele deixa de sofrer. É por isso, Mário, que você vê tanta disparidade na vida. Uns sofrem até por pequenas coisas, e outros não sofrem. Têm dores, e não sofrem. Sofrer ou não sofrer, eis a questão...
Nessa altura, comecei a divagar, e perguntei a mim mesmo o que seria sofrer. Diz o dicionário que sofrer é o mesmo que padecer. Ambas as palavras querem dizer, mais ou menos, sentir o efeito de dores físicas ou morais. Sofrer, então, seria uma maneira de sentir. Existe a dor, e a pessoa sente mais ou sente menos. Problema de perspectiva, de visão, de conhecimento, de evolução espiritual...
Interrompi minhas divagações e voltei minha atenção, novamente, para o relato de Neiva:
- Pois é, Mário, ali estava um quadro nítido de reajuste. Com a morte de Walda num desastre, Elza iria se sentir culpada, pois ela quem havia sugerido essa viagem a Goiânia. Sei que isso não seria suficiente para uma pessoa sofrer. Mas, o trauma atual iria ser reforçado pela recordação inconsciente do quadro passado. Além disso, um desastre é sempre um quadro violento, que afeta as pessoas mais do que um desencarne comum. Josué – o antigo Marcelo – também seria afetado terrivelmente, pois amava realmente a esposa, com quem tem laços afins muito antigos. Ele já era uma pessoa sofrida, pelas recordações inconscientes do passado. Além disso, ficaria com o problema da filhinha ainda tão nova. Esta, por sua vez, seria joguete das circunstâncias, e iria sofrer as conseqüências disso. Enfim, todos que ficaram, justamente os três personagens da antiga tragédia, teriam dores terríveis. O quadro se inverteu. Ontem, eles gozaram uma situação pela morte da outra personagem. Hoje, sofreriam pela morte dela!
- É, Neiva, se a gente não conhece a Lei, nos revoltamos com uma tragédia dessas. De fato, não deve ter sido fácil para você conhecer essas pessoas e saber pelo que iriam passar.
- Não, Mário, nunca é fácil a gente ver o sofrimento dos outros. Não se esqueça de que, apesar da clarividência e da Doutrina, eu sou um ser humano que ama seu próximo. Tenho mais pena e me compadeço, porque sei que poderiam evitar muito sofrimento, se aceitassem essa Doutrina, que é tão natural, tão lógica, tão fácil de entender. Nessa hora fico lamentando por tantos espíritos inteligentes, que poderiam trazer a compreensão para a humanidade, mas, ao invés disso, ficam inventando religiões e mitos tão contrários às leis naturais.
- Mas, – objetei – de qualquer forma, as pessoas têm que passar pela dor. Acho que a Doutrina não vai evitar que elas cumpram seus carmas, suas dores.
- Não é verdade, Mário. A dor só existe em função de alertar, despertar o espírito para suas realidades. Quando a gente tem uma dor de dente, é porque existe uma anormalidade. Vamos ao dentista, e o problema é resolvido. O problema da vida é muito semelhante, e o “dentista” é o Cristo, que está no coração das pessoas, no íntimo de todo ser humano. Quando a pessoa tem uma Doutrina, uma relação harmônica com seu destino transcendental, evita muita dor. Na verdade, o carma, esse efeito inexorável de uma causa anterior, pode ser modificado, recartilhado, como dizem os espíritos, e, até mesmo, evitado. No fundo, é uma compensação energética que tem que ser feita, energia a ser desenvolvida, reposta. A vantagem é que pode ser feita sem dor, quando existe uma Doutrina.
- Neiva, – disse eu – não quero parecer fanático de espiritismo, mas parece-me que ele oferece uma forma muito prática para a solução do problema: é pela mediunidade, se considerarmos o fenômeno mediúnico como natural, biológico, e não privativo do Espiritismo. Pelo que tenho visto, a mediunidade é a energia que provoca a manifestação cármica. Mas é, também, a energia que coloca o ser humano em contato com o seu transcendental, como você disse. Assim, torna-se possível fazer-se a compensação energética pela prática mediúnica, e evitar-se tragédias cármicas, como essa que você acabou de relatar.
- Sim, Mário, isso é perfeitamente possível. Se essas três pessoas – Walda, Elza e Josué – fossem espíritas ou tivessem qualquer doutrina ou religião autêntica, isto é, fossem, verdadeiramente, religiosas e não apenas na aparência; se assim fosse, e eles estivessem cumprindo seus deveres espirituais, não importa a forma, tenho quase certeza de que a atual tragédia estaria sendo evitada. Não tenha dúvida de que teriam que padecer dores – isso é inerente à nossa condição humana –, mas não sofreriam tanto! Naquele dia, atendi, ainda, uma centena de clientes. Parecia que as pessoas haviam adivinhado a tragédia, pois se tornaram pacientes e cordatas. O próprio Bodinho parecia ter-se arrependido da sua intolerância, e se foi junto com os outros. Eram seis horas da tarde, a hora em que o coração se recolhe, numa espécie de balanço do que fizemos durante o dia. De repente, ouvi um alarido no portão de entrada, e vi Bodinho correndo e acenando. Esperei, com o coração acelerado, e ele chegou perto de mim, ofegante, acompanhado de vários médiuns. Todos falavam ao mesmo tempo e, por fim, consegui entender o que diziam: Há poucos quilômetros dali, o Simca havia se chocado com uma carreta, e se espatifara. Todos estavam feridos, embora sem gravidade, exceto a morena bonita, Walda, que morrera na hora!  Isso se deu em 1962...
Permaneci muito tempo meditando naquele episódio. Uma das coisas que não conseguia entender bem era essa questão da morte, do desencarne, como dizemos nós, os espíritas, com hora marcada. Mais tarde, quando consegui uma brecha no moto contínuo da Clarividente, interroguei-a a respeito. Minha primeira pergunta foi com relação à profecia da morte:
- Neiva, já ouvi muitos relatos de pessoas que dizem ter parentes ou amigos que desencarnaram exatamente no dia e hora previstos. Isso é verdade? E você pode saber a hora em que você ou outra pessoa vai desencarnar?
- Não, Mário, nunca se sabe a hora em que uma pessoa vai morrer, mesmo que se tenha uma data, uma profecia.
- Mas, como? – retruquei – Se existe uma hora marcada, a pessoa pode burlar essa hora?
- Não, Mário, o problema não é de burla, mas, sim, de livre arbítrio e da reação humana. Nunca se sabe como um ser humano vai reagir, nem ele mesmo, nem Deus. Sim, Mário, nem Deus sabe como um ser humano vai reagir diante de uma dada situação. É verdade, existe uma programação cármica, um enredo de fatos a serem acontecidos, dentre eles, a data da morte. Mas esses fatos, esses efeitos de causas anteriores, vão acontecendo de acordo com as vontades, as reações dos componentes dos mesmos fatos e de sua aceitação, e conforme a maneira como eles reagem e interagem. Na verdade, Mário, não se pode interpretar o carma como algo estático, definitivo, como, aliás, não são os fatos humanos. Existe um dinamismo em que os fatores são variáveis ao extremo e existem os carmas coletivos. Tudo depende da gama da Lei em que os fatos se enquadram. Tudo é relativo a um ponto de referência e, não se esqueça, se as reações humanas individuais são imprevisíveis, muito mais são as reações coletivas. Na verdade, os Mentores e Guias têm um enorme trabalho para manter seus pupilos nas respectivas faixas cármicas. Sua maior preocupação é a de que seus protegidos não fujam de suas metas cármicas e não percam suas encarnações.
- Agora me ocorreu uma coisa, Neiva. Você disse que, se pudesse segurar a moça ali na UESB, poderia ter feito alguma coisa por ela. Quer dizer, ela teria a possibilidade de ser evitado o seu desencarne?
- Não. Quando ela chegou, seu desencarne já estava em andamento. É como um parto. Depois que começam as dores, não se pode evitar que a criança nasça. Assim é o processo do desencarne.
- Então foi como no caso do Alcino. Você viu a morte nos olhos dela?
- Não, não vi. Você talvez esteja impressionado com essa questão dos olhos, mas é fácil de explicar. Quando o desencarne está em andamento, tem início uma modificação metabólica que, de imediato, se reflete nos olhos. Há dilatação das pupilas e um embaçamento característico. Aliás, os médicos podem até fazer diagnósticos pela aparência da íris, nos olhos de uma pessoa.
- E com relação ao tipo de morte? Faz alguma diferença, no processo do desencarne, a maneira como a pessoa morre?
- Não, não faz diferença. Para o espírito, pouco importa a maneira de morrer. Mas importa, e muito, para os circunstantes. Assim, a morte de Walda, daquela maneira triste, foi mais para a cobrança de Josué e Elza. Vou-lhe contar um caso, que será bem ilustrativo. Quando eu era mocinha, morava na minha cidade um homem muito bom, que tinha uma família numerosa. Um dia, ele ficou doente, e entrou em coma, numa agonia de dar pena. Todo mundo na cidade se comoveu. Pior  que a agonia dele foi se prolongando de tal maneira, que ninguém mais tinha sossego na cidade. Ninguém dormia direito, e todos estavam sofrendo. A partir de certo ponto, todos passaram a ansiar que ele morresse, sossegasse logo, inclusive a própria família. E quando, finalmente, ele morreu, foi um alívio geral! Compreende, Mário? Se ele morresse uns dias antes, todos achariam que teria sido uma injustiça de Deus. Imagine tirar a vida daquele homem tão bom!
- Mas, – objetei – e agonia dele? Era merecida?
- Não, Mário, a agonia dele não era dolorosa como nós imaginávamos que fosse. Na verdade, os próprios Mentores é que estavam segurando seu espírito, até que os parentes estivessem preparados. Ele, em coma, não tinha a mesma sensibilidade, a dor que nós outros tínhamos.
- E a propósito, Neiva, como é dada essa assistência dos Médicos do Espaço? Qualquer pessoa tem essa assistência?
- Sim, qualquer ser humano recebe assistência na hora do desencarne, mesmo que se trate de desencarne coletivo. Para isso, existem equipes especializadas, que estão sempre prontas a atender o chamado dos Mentores.
- Bem, Neiva, acho que, com essa explicação, ficamos sabendo tudo sobre a morte...
- Não, Mário, nós não sabemos tudo sobre a morte, porque cada caso é diferente de outro. Não existem duas mortes iguais. Mais importante do que saber sobre a morte é saber sobre a vida! Trate de escrever. Explique tudo às pessoas, para que saibam que as Leis do Criador são perfeitas e que não existe ser humano algum sem oportunidade. Não pense que as pessoas ficam na dependência exclusiva do Espiritismo ou de qualquer outra religião em particular. Não! Os mecanismos de assistência espiritual existem, e funcionam sempre. O problema é o ser sair um pouco da ilusão, do maya, e mergulhar na sua própria realidade. Não quero afirmar, com isso, que não deva haver religiões. Quero dizer é que não devem haver fórmulas criadas pelos homens. A vida em si é a melhor religião do ser humano! O melhor altar que existe é o coração humano. Se nesse altar se cultua Deus ou o Diabo, é o problema de cada um, é a posição que cada um determina para si mesmo. O culto é essencialmente individual na religião da vida.
A Clarividente se calou, e seus olhos se perderam no infinito. Neles se estampavam uma dor profunda e um amor imenso. Dir-se-ia que aqueles olhos abrangiam toda a humanidade. Respeitei aquele silêncio, e também calei-me. A noite já avançava pela madrugada, e me lembrei de que, no dia seguinte, haveria uma multidão de médiuns que viriam em busca de instrução e desenvolvimento. Coisas grandes, enormes, brotavam no meu peito, e eu tinha vontade de gritar, falar com todo mundo, mostrar que não era necessário sofrer tantas dores, padecer tanto! Amanhã eu falaria, diria a todos aqueles seres humanos, privilegiados por estarem no âmbito de uma Doutrina, as coisas que acabara de ouvir. Sim, amanhã eu falaria!...

O S    S U I C I D A S

A notícia abalou todos na Casa Grande: dona Leonor, a simpática senhora que, há dois anos, freqüentava o Vale, havia se suicidado! O comentário dos dias que se seguiram girou em torno dos suicidas. Para mim, esse assunto se concluíra com a literatura de Chico Xavier. O suicida era um ser humano fracassado, tanto aqui como no mundo dos espíritos, e sua recuperação era tão difícil que até hospitais especializados existiam no espaço para assisti-los. A idéia mais comum em torno disso era a de um espírito que frustrara o plano de Deus, e que ninguém poderia destruir aquilo que Deus criou: a vida!
Passei a observar a Clarividente e reparei que, ao falar nisso, ela se emocionava, chegando, mesmo, a chorar. Mas vi, também, que sua emoção tinha um cunho diferente. Não tinha ela a mesma idéia de fracasso, que pairava em meu espírito, fracasso por não ter evitado o suicídio de uma pessoa que era assistida nossa. Aos poucos, fui entendendo que o problema do suicídio era mais complexo e que havia ângulos que ainda não haviam sido abordados na literatura espiritual. A senhora em questão resumia sua presença, no Vale, em contatos diretos com a Clarividente, e pouco sabíamos sobre ela. Aos poucos, consegui saber sua história e, a partir daí, minhas idéias sobre o suicídio se modificaram muito.
Tudo começou numa tarde quente de agosto de 1970. Neiva estava exausta pelos trabalhos ininterruptos. Quando duas senhoras desceram de luxuoso carro, na porta da Casa Grande, todo mundo se preveniu para evitar uma consulta forçada. Mas se sentaram na sala, uma das senhoras desandou a chorar convulsivamente, e daí, para conseguir a atenção de Neiva, foi um passo.
Sentaram-se as duas diante de Neiva. Embora não estivesse mediunizada, Neiva percebeu, de pronto, que o maior problema não era o da senhora que chorava, mas, sim, o da outra! A que chorava – Silvia – , tinha um descontrole emocional, e seus motivos eram fúteis, demonstrando falta de propósitos mais responsáveis. A outra, porém, embora não demonstrasse, estava em grande perigo.
Eram Leonor de Souza, 42 anos, e Silvia Castro, 36. Leonor pediu licença para fumar, e acendeu o cigarro numa longa piteira. Segurou a mão de Silvia, e pediu a Neiva que atendesse a ela em primeiro lugar. Embora Neiva não estivesse vendo coisa alguma que demandasse maior atenção, consentiu no pedido de Leonor. Pediu-lhe que fosse até a cozinha tomar um café, enquanto atendia Silvia. Logo que Leonor saiu, Silvia parou de chorar.
- Dona Neiva, – disse ela – a senhora tem um juramento para guardar segredo, não é verdade? Já me falaram disso.
- Sim. – respondeu Neiva – Jurei meus olhos a Nosso Senhor Jesus Cristo, para que os arranque no dia em que eu disser uma mentira ou induzir alguém ao erro, pela minha clarividência.
- Pois é, dona Neiva, a senhora tem que me ajudar em segredo. Meu marido acaba de ser transferido de Brasília para o Rio de Janeiro, e eu não suporto a idéia de abandonar Brasília. O motivo principal, pelo qual não quero sair daqui, é que amo este homem, e ele diz que me matará se eu sair de perto dele.
Dizendo isso, Silvia tirou uma fotografia da bolsa e estendeu-a a Neiva. Tomando a foto em suas mãos, Neiva quedou-se estarrecida: o retrato era do marido de Leonor, da amiga de Silvia! Sem dar a perceber que já identificara seu amante, Neiva prometeu-lhe segredo. Entretanto, sentia-se irritada com a futilidade aquela mulher. Alem de trazer um assunto escabroso – ser amante do marido da amiga –, vinha, ainda, com toda falta de respeito, pedir a manutenção daquela situação. Disfarçando suas próprias emoções, Neiva prometeu que iria fazer todo esforço para que ela não tivesse que sair de Brasília, e pediu-lhe que voltasse daí a alguns dias, num dia de consulta. Em seguida, mandou entrar Leonor, que foi logo dizendo:
- Dona Neiva, a senhora conseguiu um milagre fazendo Silvia para de chorar. Bem que ela me disse que a senhora era extraordinária!
Ainda agastada com o desplante de Silvia, Neiva olhou-a e respondeu:
- A senhora é quem devia estar chorando!...
- É verdade, dona Neiva. Estou desolada e não estou mais agüentando viver com o meu problema. Sou casada, meu marido é muito bom para mim, tenho filhos, mas estou amando desesperadamente outro homem! Mas, por favor, não me leve a mal. Amo, sei que sou correspondida, mas nada fiz de errado. Não me julgo no direito de prejudicar a quem quer que seja, minha família ou a dele, pois também é casado! A única coisa que acontece é conversarmos de vez em quando. Vim procurá-la para que me ajude a manter meu equilíbrio. Tanto ele como eu, queremos cumprir rigorosamente nossos deveres.
A atitude respeitosa de Leonor contrastou com o despudor de Silvia. E, apesar de não estar bem mediunizada, Neiva compreendeu que o caso era muito sério. Prometeu ajudá-la e lhe pediu que voltasse em dia de consulta.
Três dias depois, elas voltaram. Neiva já havia visto o quadro delas: Leonor tinha sido uma nobre da corte francesa, e havia se endividado com seu atual amor, que, naquele tempo, se chamava Antoine. Os laços que os uniam eram tão fortes que não lhes permitiam, agora, outra atitude senão a de um amor verdadeiro, sem manchas. Nisso se constituía a faixa cármica dos dois. Sentir aquela atração quase irresistível, e não poder, sem macular o amor, se unir. Só uma atitude altiva e honesta satisfaria aqueles espíritos. Com isso, o sofrimento era intenso, como um fogo perene a queimar-lhes os corações. Neiva admirou-se da intuição daqueles dois. Vivendo, como viviam, num meio social em que as irregularidades conjugais eram norma, e com todas as facilidades para a realização, os dois haviam tomado aquela atitude nobre.
Dia a dia, o velho francês ressarcia os desmandos do tempo em que se endividara com sua amada. Para agravar o sofrimento, a vida os colocara lado a lado, na intimidade de uma relação social próxima.
A intuição de Leonor, nas mãos de quem estava a manutenção daquela situação, foi confirmada pelo quadro espiritual. Se eles se entregassem à relação fácil, ao desvirtuamento daquele amor, ambos se destruiriam. Teriam que renunciar a qualquer realização pelo resto de seus dias na Terra!
O problema é que Leonor não estava mais conseguindo resistir. A idéia do suicídio a perseguia, constantemente, e, por isso, viera consultar Neiva. Pedia-lhe que a ajudasse a manter sua linha de procedimento, o que se estava tornando cada vez mais difícil.
Neiva se viu num dilema. A possibilidade de suicídio era muito grande. A realização ou o suicídio... Sexo ou morte!...
Desde esse dia, com grande habilidade e carinho, prometendo ajudá-la sempre e a recebendo a qualquer hora, do dia ou da noite, Neiva foi conduzindo pela mão aquela boa alma, sempre pedindo a Deus por ela. Às vezes, Neiva sentia-se tentada a desatar a rigidez daqueles laços morais. Afinal, amar não é pecado. Aliás, a palavra pecado não faz parte do dicionário espírita. O que existe é a responsabilidade do espírito pelos seus próprios atos.
Assim se passaram dois anos. Dia a dia, Neiva via aquele espírito perder as forças na luta. Para agravar a situação, o amado de Leonor fora convidado para ocupar um alto cargo em outro estado, e ela não pôde acompanhá-lo. Sua correspondência era apaixonada e eivada de desespero.
No dia de aniversário de Neiva – 30 de outubro –, Leonor lhe trouxe um presente: uma pequena rosa lavrada em prata e um vidro de fino perfume francês.
- Neiva, – disse ela – vou viajar, e antes que esses presentes se acabem, eu estarei longe deste mundo! Não quero que você me veja morta. Quero que se lembre de mim assim como sou agora...
Sentindo toda a tristeza do mundo, Neiva disse-lhe, apenas, poucas palavras, pois sabia que já era tarde e nada mais poderia fazer. Leonor partiu, e Neiva passou um dia terrível. Sem poder deixar de atender às múltiplas obrigações de aniversariante, nem conseguiu pensar direito no assunto. Sentiu-se fisicamente mal.
Quando conseguiu uma pequena folga, tomou a resolução de avisar à família de Leonor. Descobriu, então, que ninguém da família sabia de sua freqüência no Vale, a não ser um filho moço. Depois de longa espera, o rapaz veio procurar Neiva. Disse que ele era o único que sabia da assistência de Neiva à sua mãe, e estava muito agradecido por isso. Conhecia a desonestidade de seu pai, que sabia ter uma amante, e via o desespero que ele causava a sua mãe. Ele era a favor dela, mas ela estava muito frustrada, e a toda hora falava em se matar. Ele era estudante de Medicina, e nunca creditou que, realmente, sua mãe fosse se suicidar.
No dia 2 de novembro, o rapaz voltou a ver Neiva, para lhe dizer que a mãe tentara o suicídio e estava agonizante. No dia seguinte, voltou para comunicar que ela havia morrido.
Desde então o rapaz tornou-se amigo de Neiva, e a visitava constantemente.
Um ano depois, Neiva recebeu a notícia da morte do antigo nobre francês.
- É, Neiva, – disse eu – uma história quase banal de frustração, de desespero. Você acha que está certo? Afinal de contas, um suicídio é um atentado a Deus, é contra a Natureza, contra o instinto de conservação!
- Concordo com você, Mário, mas apenas em parte. Devemos ser cuidadosos em nosso julgamento. A maioria dos suicídios se deve a fatos de frustrações de personalidade, do ser transitório, da incapacidade para resistir às provas da vida. Mas, veja que nós, habitualmente, consideramos suicídio apenas quando a pessoa se mata violentamente. Mas não esqueça que o mesmo problema existe nos outros que, por frustração, não se matam fisicamente, mas se destroem moralmente e socialmente. E deve se considerar, ainda, aqueles que não se matam visivelmente, mas se matam aos poucos, como os alcoólatras, os toxicômanos, etc.
- Dessa maneira, Neiva, praticamente metade da humanidade é suicida?
- É, não é? Lembra-se da parábola dos talentos? Uma pessoa que enterra seus talentos não mata a sua oportunidade como ser encarnado? E aqueles que se deixam dominar pela preguiça, pela indolência, pelas idéias negativas? Esses não atentam contra Deus? Quero lembrar a você, Mário, da relatividade das coisas. É lógico que a autodestruição não pode ser boa. Mas a verdade é que ela é conceituada, na humanidade, em apenas um de seus aspectos. A humanidade é excessivamente complacente com os desmandos sexuais. Saiba você que, nos planos espirituais, é muito mais penosa a situação de um espírito que se atolou no sexo, que a de um suicida relativamente justificado. Você fala em natureza e instinto de conservação. Na realidade, temos um conceito do que chamamos natureza. Na verdade, a natureza estabelece formas de vivência e sobrevivência segundo um equilíbrio geral. Mas, pergunto eu, o que é natureza no Homem civilizado, moderno, habitante das grandes cidades? E o que é instinto de conservação nesse mesmo Homem? Repare que as idéias mudam muito quando as olhamos sob esse prisma. Há toda uma gama de valores novos, criados pelo progresso humano, que diferem muito do Homem in natura. E, se o espírito já conseguiu uma certa evolução, ele obtém  um senso de responsabilidade que lhe permite saber se pode ou não viver de uma certa maneira.
- Mas, Neiva, – disse eu – afinal, o que é considerado suicídio nos planos espirituais? Está certo que devemos ser cuidadosos no julgar. Também está certo que consideremos suicidas todos que destroem suas possibilidades de vida, seja de uma forma ou de outra. Mas, diga-me, então: existem ou não existem suicidas?
- É lógico que existem, Mário. Todo ser humano que por egoísmo, preguiça ou qualquer outro motivo planeja sua morte ou destruição, esse é um suicida. O suicídio é quando a morte é premeditada. O que causa o suicídio é a falta de uma doutrina, da aceitação da existência do espírito, da vida fora da matéria. O suicida é o que tenta morrer em vez de tentar viver. Leonor, a meu ver, não se suicidou! Apenas, saiu da vida terrena!...

E M E R E N C I A N A

-         Marcolino de Souza Filho, 43 anos. Emerenciana Ramos de Souza, 40 anos.
Neiva deu início ao seu relato:
- Quem deu os nomes foi Marcolino. Emerenciana, sua esposa, o objeto da consulta, não tinha condições de falar, pois havia sofrido um derrame cerebral. Muda, a boca deformada, num ríctus desagradável, movendo-se com dificuldade, a mulher que estava diante de mim era bem diferente da Emerenciana de cinco anos atrás. Seus olhos, cheios de lágrimas, reconheceram-me e imploraram ajuda, na sua muda linguagem. Meu pensamento voltou, como um raio, para a consulta que fizera. Cinco anos!... A Emerenciana de então se orgulhava de ser uma mulher bem conservada. Vinha para pedir auxílio para o marido. Queixava-se de que ele era ruim e intolerante, não a deixava viver em paz.  Eu olhara seu quadro e vira que aquela atitude não correspondia inteiramente à verdade. Nada vira no comportamento do marido. Vira, apenas, uma mulher irrequieta, assediada por inúmeros cobradores espirituais e habituada a mandar. Procurara a razão mais profunda e verificara que ela havia sido uma senhora de escravos, e que estes já se aproximavam, para cobrar as crueldades que ela havia praticado. Entretanto, pela própria atitude dela, não vira condições para chamá-la à razão. Como faço num caso desses, mobilizei toda a doçura que podia e convidei-a ao trabalho espiritual. Disse-lhe que ela precisava trabalhar mediunicamente.
- Ah, dona Neiva! – respondeu ela – A senhora não conhece meu marido! Ele não gosta de espiritismo, diz que tudo é macumba e não consente que eu trabalhe. Sinto muito, dona Neiva, mas não posso vir!...
Neiva continuou:
- Agora, ali estava ela, naquela triste situação. Voltei-me para Marcolino, que me olhava esperançoso, e lembrei-o da consulta que Emerenciana havia feito antes.
- Mentira, dona Neiva! Ela nunca me disse que a senhora a havia convidado para o trabalho espiritual. Se ele me tivesse falado na ocasião, eu teria dado graças a Deus, pois eu vivia desesperado, procurando alguma coisa que a acalmasse. O que ela sempre quis, na verdade, foi infernizar a minha vida.
- Fiquei com pena dele, – falou Neiva – e achei justificada sua explosão. Entretanto, nada podia fazer. Cheguei a pensar em convidá-la, novamente, para o trabalho. Imaginei-a de uniforme, no meio do corpo mediúnico, mas desisti da idéia. Há cinco anos, tinha o charme bem distribuído, proporcional à cobrança que se aproximava. Com o seu desenvolvimento mediúnico, seu ectoplasma iria se afinando, seus cobradores iriam se afastando, na medida em que obtivessem a devolução do que se julgavam com direito, em termos de energia e de doutrina, e ela atravessaria seu carma com relativa tranqüilidade. Agora, com seu magnético animal concentrado, a única coisa que fazia era puxar seus cobradores para perto de si, e eles a sugariam até a morte. Não, não seria possível impregnar a Corrente com esse pesado fluido animal. A Corrente Indiana do Espaço é uma corrente muito fina, de espíritos em evolução, e tem muita força. Ela poderia, com seus poderes, trazer algum alívio e, talvez mesmo, absorver aqueles espíritos de negros escravos africanos. Mas, para isso, seria necessário que Emerenciana tivesse capacidade consciencional de tomar conta de si, e isso era impossível. Seu cérebro, seu sistema nervoso, sua circulação, tudo já estava deteriorado, e o espírito não tem capacidade de domínio quando o aparelho está estragado.
- Mas, Neiva, – disse eu – quer dizer que uma pessoa que esteja doente não tem oportunidade no mediunismo?
- Depende, Mário. Se a doença é apenas do carma e se ainda não atingiu os centros de controle do ser encarnado, é lógico que ele tem essa oportunidade. Naturalmente, ele não poderá integrar a Corrente se tiver algum defeito físico, mas, mesmo assim, pode ser assistido por ela e, até mesmo, se curar. Cada caso merece um exame especial. O principal é saber que tudo tem um tempo certo e uma oportunidade. Há pessoas que se devem iniciar, imediatamente, no trabalho, embora a aparência de suas vidas não indique essa necessidade. Há outras que irão precisar de muita integração, e outras que jamais irão precisar entrar para trabalhar mediunicamente. Afinal, o Mediunismo, o Espiritismo, as religiões e doutrinas, são somente meios, mais ou menos específicos, de colocar o ser humano em contato com o seu transcendental. Mas essas técnicas e formas não são fins em si, são apenas meios. A Natureza tem muitos meios de chegar ao mesmo fim, que é o ser humano se encontrar, realizar seu destino, seu programa de vida. Não se esqueça, Mário, de que todos trazem alguma doutrina dentro de si. É por isso que não devemos nos preocupar com o proselitismo. Sei que, muitas vezes, você se preocupa porque certas pessoas não voltam mais, médiuns desistem do trabalho, ou mais pessoas não podem ser atendidas. Não se preocupe, Mário. Importa é que o ser humano tenha despertado em si a consciência da outra vida, da vida do espírito. Se ele já experimentou isso, a própria vida encontrará um mecanismo para aproveitá-lo e conduzi-lo ao destino mais alto. Na verdade, me parece absurdo transformar uma pessoa, libertá-la do sofrimento e aprisioná-la numa rede de preconceitos religiosos ou doutrinários. Isso não é condizente com a liberdade humana!
- Neiva, você fala em liberdade humana. Como conceituar essa liberdade em face do carma? Por exemplo, no caso de Emerenciana, você respeitou a liberdade dela. Se tivesse insistido, apelado para o medo, contasse a verdade ou usasse de qualquer meio persuasivo, mesmo arranhando a liberdade de decisão dela, não teria evitado seu quadro atual?
- Aparentemente, sim, Mário, mas, na realidade, não. Afinal, o que é Espiritismo ou Mediunismo? Apenas técnicas de manipulação de forças humanas e forças do Céu. Pertencem, portanto, aos Homens e a Deus. Pergunto: podemos manipular essas forças sem o consentimento desses seres e de Deus? É lógico que não, Mário. Nós apenas recebemos o mandato de ajudar as pessoas, e não o de controlar seus destinos. O destino de cada um pertence a si mesmo e a Deus. Se insistirmos com uma pessoa, para que venha trabalhar e que se integre ao Espiritismo, partimos da premissa de que precisamos dela, de que ela vem para fazer um favor ao Espiritismo. Nesse estado psicológico, ela dá apenas o supérfluo – o que se confunde tão bem com a caridade – e nada lhe toca na consciência transcendental. Nesse caso, entram em jogo, apenas, sua personalidade transitória, os padrões comuns de comportamento, os chavões da vida. Teremos, assim, os médiuns de fins de semana, os dias reservados para Deus, os espíritos estacionados, as pessoas que nunca vão além da superfície de si mesmas. Se Emerenciana ingressasse na Doutrina na base de uma convicção exterior a si mesma, acabaria por sofrer do mesmo jeito que atualmente, e, o que é pior, levaria a descrença a outras pessoas. Mário, dói o nosso coração ver médiuns sofrendo seus carmas em más condições. É como ver uma pessoa morrer de sede na beira da torneira! Não, Mário, não é assim que se deve proceder. A gente deve amar as pessoas, tocar as veias profundas de seus corações, despertá-las para si mesmas, e ajudá-las até o limite da sua autonomia divina, do seu livre arbítrio. É o que aconteceu com Emerenciana.. Esse atual triste quadro é o seu limite. A vida ofereceu todas as oportunidades a ela, e eram oportunidades boas, segundo o conceito daqueles que a cercavam – seu marido, seus amigos e seus juizes! Mas, a verdadeira oportunidade está sendo essa que, agora, ela está sofrendo. O derrame atingiu sua sensibilidade, sua vaidade, sua veia sensível. Seu espírito retoma, agora, o caminho evolutivo, reconhece suas dívidas e sofre, proporcionalmente, a dor. Percebe, Mário, as relações entre dor e sofrimento? Suponhamos que ela viesse trabalhar sem convicção. A proteção da Corrente a pouparia de toda uma série de pequenos sofrimentos, pois sua psique teria a segurança do meio, de alguém que a ele pertence. A rotina mediúnica lhe permitiria ter a sensação de que estaria fazendo sua obrigação, e ela jamais emitiria o ectoplasma necessário, o que significa que não ganharia bônus suficientes para pagar a seus cobradores. Quando chegasse a hora do desencarne, já estariam eles à espera do seu espírito, trazendo-lhe o pavor da morte! Eu sei, Mário, que há muita gente nessas condições, e alguns são até mesmo conceituados como bons médiuns. Justamente por essa razão que nosso corpo mediúnico é tão variável e cheio de imprevistos. Evitamos toda forma de comportamento compulsório e regras rígidas. Deixamos que cada pessoa seja ela mesma e faça sua própria moral. Só assim elas sentem, por conta própria, as agressões da vida, e despertam as coisas profundas que trazem dentro de si mesmas. Nós visamos seus espíritos transcendentais, não as suas personalidades transitórias. Acho mesmo, Mário, que a diferença fundamental entre a Corrente Indiana do Espaço e as outras correntes reside nisso. Quando a pessoa chega à nossa presença, nós não estamos interessados no seu destino transitório, na sua posição social ou no seu conceito bom ou mau. Estamos, sim, interessados no seu carma e na sua mediunidade. Carma e mediunidade são paralelos, e se eqüivalem em intensidade. É por isso que mais nos interessamos aos considerados piores. Quanto mais antipática, mais sofrida, machucada pela vida, mais a pessoa desperta nosso amor cristão. Não estamos à procura dos bons. Bom, para nós, é o filho de Deus que já sentiu, na carne, os espinhos, e vem clamando por Justiça. Veja a perfeição do Sermão da Montanha: “Bem aventurados os que têm fome e sede de Justiça, porque serão saciados”!
- Mas, afinal, Neiva, o que foi feito de Emerenciana?
- Estou tratando dela, e está bem melhor. A toda hora ela me procura, como uma ave arrastando a asa partida, e eu a ajudo. Aliás, você mesmo tem ajudado muito ela, lembra-se? Quando ela não agüenta mais o assédio de seus amigos escravos, a gente faz um trabalho, e muitos deles se afastam. Dia a dia, ela está ganhando sua libertação. Em meio à sua miséria física atual, seu espírito está se erguendo, e o dia de sua emancipação está próximo. Aos poucos, ela vai transformando sua situação em uma rotina, em que a dor é muita, mas o sofrimento é bem menor.
A história de Emerenciana me trouxe profundas reflexões. Agora, começava a compreender e a aceitar a aparente desorganização do nosso grupo, quando comparado a outros grupos iniciáticos e religiosos. Agora sabia o que significava “culto da personalidade” em seu sentido mais profundo.
A personalidade organiza, seleciona e dá boa aparência, satisfaz a vaidade humana e o orgulho coletivo. Mas, infelizmente, é inócua e não traz novidades. Afinal de contas, eu deixara para trás grandes organizações religiosas e não-religiosas, e me juntara a esse bando de ciganos, sem saber porquê!
Agora, porém, eu sabia!...

H I P P I E S

O ponto alto, no Templo do Amanhecer, era na sexta-feira. Aliás, sexta e domingo. Nestes dias havia maior concentração dos freqüentadores. Havíamos inaugurado o novo edifício, circular e iniciático, amplo e bonito, construído em quarenta e seis dias, com madeira velha e prodígios de engenharia caseira. Eu costumava dizer aos visitantes que, por pura coincidência, o Templo de Salomão, mencionado nos Evangelhos, havia sido construído em quarenta e seis anos.
O ritual era, realmente, bonito. A luz das velas e as tapeçarias vermelhas contrastavam com o branco dos uniformes dos médiuns, e suas vozes, cantando Mayante em coro, produziam um efeito balsâmico. O número de médiuns em trabalho era ideal. Atualmente, seu número cresceu tanto que o Templo ficou pequeno e, praticamente, desaparece sob a multidão. Mas o público, naqueles dias, já era grande, e eu gostava de ver aquele interesse das pessoas.
O lugar reservado ao público era menor, e muitos ficavam de pé, em silêncio. Gente de todo tipo e de todas as categorias. O Evangelho era pregado de forma original e didática, fora qualquer estilo clássico de sermões. Templo, médiuns e hinos faziam com o público a prática de um Evangelho vivo e atuante.
Naquela sexta-feira o trabalho se prolongara até quase meia-noite, devido ao enorme número de pessoas para tomar passes. Atento aos menores detalhes do atendimento, ansioso por que todos saíssemos satisfeitos, notei um movimento desusado na porta. Pouco antes, ouvira o ruído fora do comum de motores no pátio. Mediunizado, eu registrava os fatos com maior acuidade, e fiquei alerta. Quando dei fé, os bancos, pouco antes ocupados pelo público que tomava os passes, estavam lotados de novo. Notei uma mudança no ambiente e um silêncio de expectativa.
Como o lugar reservado ao público era mal iluminado, não vi bem o que acontecera. Nisso, chega um Doutrinador, o responsável pelo bem-estar do público, com ar assustado, e me diz, apreensivo:
- Mário, um bando de hippies! Lá estão eles, sentados. Cuidado!
De pronto, fiquei tenso. Imagens saltaram no meu consciente. Depredações, ironias e irreverências! De repente, me senti ultrajado no meu zelo templário e, como um “Dom Camilo” caboclo, investi contra o “Popone” e seu exército. (Dom Camilo e Popone foram protagonistas de diversas histórias, famosas naquela época, passadas na Itália, onde o padre e o líder comunista se enfrentavam, cada um mostrando sua ótica dos acontecimentos – TRT Tumarã)
Os hippies me olharam em silêncio.
Era um grupo de rapazes e moças. Calças Lee e cabelos longos. Alguns tinham barbas compridas e óculos de aro metálico. Felizmente, nenhum mascava chicletes.
Dominei meu ofegar e consegui perguntar o que desejavam. A resposta não demorou, e veio com simplicidade:
- Nada! Apenas queremos saber o que é isto.
Engoli o Dom Camilo junto com Popone, e fiquei ali, olhando aqueles rostos jovens, pouco distintos na penumbra. Mas, minha precoce indignação azedara minha voz.
- Isto é um templo espírita, – respondi – e estamos em trabalho!
- É, a gente ouviu falar deste Vale. Viemos ver qual é a transa!
A resposta viera de um único deles. Os outros se mantinham em silêncio. E o silêncio prosseguia. Percebi que havia perdido uma parada, antes mesmo que ela acontecesse.... Subitamente, senti uma aragem suave descer em mim. Tomei novo zelo. Senti certa ternura. Suavizei minha voz.
- Sejam benvindos! A casa é de vocês – disse eu.
- Como é que funciona isto? – uma voz feminina perguntou.
Tomei posição e comecei a lhes explicar, como fazia com os visitantes comuns. Subitamente, me alertei: começaram a surgir perguntas que, pelo teor, demonstravam familiaridade com os assuntos iniciáticos. Perguntas sérias. Esqueci, por momentos, o público que, sentindo algo diferente, começava a se retirar discretamente. Alguns ficaram na entrada, curiosos, mas alertas, prontos para uma eventual saída repentina. E o diálogo mais vivo em que, até então, eu tomara parte, aconteceu. Entusiasmei-me com o assunto. Orgulhei-me da nossa Doutrina, da ampla liberdade que ela me proporcionava. Liberdade na linguagem e na abordagem dos assuntos.
Mentalmente, agradeci a Deus por não estar cercado por preconceitos religiosos ou morais. Quinze ou vinte minutos depois, lembrei-me de que ainda não havia encerrado os trabalhos. Pedi licença, e eles pediram para tomar passes. Concordei, e o espetáculo ficou gravado na minha mente.
Aqueles rapazes e moças, com seus trajes coloridos e seus cabelos longos, tomavam seus passes com todo respeito e simplicidade.
Na primeira oportunidade, dirigi-me a Neiva, que conversava com algumas pessoas.
- Que é isso, Mário? – perguntou ela.
- Hippies – respondi.
E ficamos olhando aquelas figuras bizarras que, diligentemente, tomavam seus passes. Alguns deles se aproximaram de nós e puxaram conversa com Neiva.
Encerrei os trabalhos, e os médiuns cantaram “Noite de Paz” com a tranqüilidade de tarefa concluída. Aos poucos, os médiuns foram saindo. Olhei para onde deixara Neiva e a vi num banquinho, rodeada pelos hippies, sentados no chão e nos banquinhos dos Pretos Velhos.
Preocupado com o cansaço de Neiva, aproximei-me e vi que, entre ela e os jovens, se estabelecera um animado diálogo. Prestei atenção na conversa, e várias vezes minha língua coçou, com vontade de responder às perguntas feitas. Percebi, porém, que as respostas de Neiva tinham um cunho diferente do seu arrazoado habitual, e resolvi conter-me. Aos poucos, fui percebendo que, entre ela e o grupo, formara-se um élan, do qual me sentia excluído. Aliás, a humanidade toda estava excluída daquela conversa.
O frio da madrugada fez com que me encolhesse dentro do uniforme de fazenda leve. Preocupei-me com Neiva e sua tosse crônica. Para minha surpresa, vi que um dos hippies colocara sua jaqueta sobre os ombros dela, e que ela aceitara o gesto de carinho com toda naturalidade.
Nossa Clarividente, minha mentora terrena, se transformara numa hippie! Essa cena iria se repetir ainda muitas vezes, no Templo, entre os eucaliptos ou em qualquer outra parte do Vale onde se encontrassem. Os hippies, praticamente, invadiram o Vale do Amanhecer. Mas, de hippies, só tinham o apelido. É verdade que “puxavam uma fumacinha” e tinham alguns hábitos insólitos. Sua linguagem, de pronúncia carioca, era cheia de expressões peculiares, tais como “transa”, “que barato”, “tô na minha”, “legal”, “podes crer”, “pintou”, etc.
Aos poucos essa linguagem foi sendo assimilada por todos do Vale. Com a mesma naturalidade com que haviam chegado ao Templo, sentaram-se à mesa, na Casa Grande, e alguns dormiam em sacos de dormir, embaixo das árvores. Os carros iam e vinham, e, não raro, a gente se irritava com o pipocar de motocicletas ameaçadoras.
Cada dia chegavam novos “caras”, e, no meu rancho-escritório, o dia inteiro se discutiam Herman Hesse, Espiritismo, Induísmo, Tibete, ritos estranhos e a situação da juventude no mundo moderno.
Surpreendia-me o conhecimento variado de que eram portadores. Alguns já haviam concluído a Universidade, e outros eram estudantes. De modo geral, todos estavam em busca de algo místico, de soluções transcendentais e de uma explicação para os fatos da vida. Criticavam acerbamente a moral e comportamento das classes sociais, mas não demonstravam rancor. Suas expressões favoritas eram “paz”, “amor” e congêneres. Riam muito e gostavam de participar das rodas de violão, uma das tradições do Vale.
Aos poucos, foi nascendo um sentimento de amor alegre entre eles e nós. Jamais provocaram qualquer situação desagradável ou de desrespeito. Nossas meninas e meninos conviviam com eles, e demonstravam carinho especial pelos pequeninos do orfanato, que os rodeavam sem cerimônia. Constantemente, suas motos volteavam, ameaçadoras, com dois ou três meninos precariamente equilibrados nas garupas.
A notícia da presença deles no Vale se espalhou rapidamente. Diariamente, éramos visitados por agentes de polícia e de órgãos de segurança. O problema foi tomando um aspecto tão sério, que obrigou Neiva a lançar mão das suas relações com as autoridades. Estas, tão pronto se inteiraram da verdadeira razão da presença deles no Vale, passaram a dar cobertura e incentivar nosso trabalho junto àqueles jovens.
Pessoas, entretanto, criticavam nossa atitude. Afinal, o Vale era um templo espírita, um lugar de rezar – assim diziam – e esses vadios estavam tomando o tempo e o lugar de pessoas necessitadas. Tais críticas, porém, eram recebidas com bom humor. Como é bom a gente ser independente e consciente da própria missão!
Aos poucos, as reclamações acabaram e o povo se acostumou com eles. Rapidamente, eles assimilaram os princípios que orientavam nossa vida. Adotaram o Mediunismo e aprenderam suas técnicas. Com autorização especial de Pai Seta Branca, passaram a fazer parte dos trabalhos do Templo. Em lugar do uniforme, usavam somente a faixa característica de nossa Corrente.
A princípio, a gente custava a aceitar. Rapazes e moças, com colares, cabelos longos, barbas compridas, roupas coloridas e justas, misturando-se com os médiuns, incorporando, doutrinando, lidando com obsidiados e trabalhos de cura. Aos poucos, porém, eles foram conquistando a confiança dos Doutrinadores, a ponto de serem chamados para o atendimento de casos mais difíceis. Tinham capacidade mediúnica além do normal e trabalhavam com prazer.
Aprendemos a amar aqueles jovens. As moças, principalmente, fazendo seus artesanatos, convivendo, sem constrangimento, na nossa pobreza, revelavam a finura dos padrões em que haviam sido criadas.
Aos poucos, a finalidade da vinda deles foi-se evidenciando. Haviam terminado a busca. Pouco a pouco, foram abandonando os hábitos de que eram portadores. Alguns se encaminharam de novo às suas escolas, outros entraram em contato com os pais, que há muito não viam. Para nossa surpresa, começaram a trazer para o Vale seus genitores. Chegamos a organizar um trabalho especial de desenvolvimento mediúnico para atender a seus pais. Reconciliações dramáticas tinham lugar, de vez em quando. Alguns pais vieram nos procurar, pensando estarem seus filhos de integrando em algum “Woodstock” candango. Outros haviam pensado que o Vale era um lugar onde se traficavam tóxicos e similares...
Por fim, chegou o dia em que a missão deles estava delineada. O grupo, já então muito reduzido, iria fundar seu próprio “Vale”, com seu ritual adequado, e se dedicaria ao trabalho espiritual de socorro aos jovens e intelectuais desajustados. Num dia de Sol forte, fizeram sua iniciação. Juraram, solenemente, jamais ingerir álcool ou qualquer substância tóxica, e adotaram o Mediunismo como base de seu trabalho. Seu lugar de trabalho chama-se “Vale do Sol e da Esperança”.

OS  PRECURSORES

A bela senhora chorava convulsivamente. Neiva consolava-a, constrangida, e eu apressei a saída dos curiosos. As duas permaneceram muito tempo juntas. Mais tarde, Neiva me chamou e apresentou-a. Pediu-me, então, que falasse sobre a Doutrina e mediunidade, pois dona Hilda queria desenvolver-se. Dias depois, dona Hilda apresentou-me o marido, um engenheiro de quarenta e cinco anos e de sucesso na carreira.
Casados há vinte anos, formavam um par harmonioso em temperamento e educação. Constrangia-me, apenas, o trato de ambos, excessivamente formal e distante. Chegavam no seu luxuoso carro com motorista, e sua presença contrastava com nosso ambiente humilde. Como estavam entregues aos meus cuidados de Doutrinador, me esforçava para que ficassem mais à vontade, menos formais.
Aos poucos, em dias sucessivos de contatos e trabalhos mediúnicos, ambos perderam boa parcela da reserva, e compareciam ao Vale em trajes esportivos. Dr. Jonas falava pouco e dona Hilda era mais desembaraçada. Felizmente, para mim e os que procuram o Vale, não penetro, habitualmente, nas particularidades do problema de cada um. Interesso-me, tão somente, pela natureza do assunto, e mantenho o diálogo sem confidências. Assim, ficamos mais à vontade, o cliente e eu.
Mas, chegou o dia em que o casal veio me solicitar um favor. Queria que eu conversasse com um seu filho, um rapaz de dezesseis anos. Prontifiquei-me logo e, alguns dias depois, o rapaz me foi apresentado. O contraste entre o jovem e os pais me chocou. Arrogante, cheio de expressões amargas, arredio a qualquer aproximação e revelando profundo desprezo pela família, Waltinho quase me tirou dos propósitos de ajuda. Ficou pouco tempo comigo, e eu, semiderrotado, procurei a Clarividente.
- Neiva, – disse eu – o que há com aquele rapaz, filho daquele casal do qual você me apresentou a mulher, dona Hilda?
- Mário, – respondeu ela – prepare-se para um choque: esse rapaz é viciado em drogas, e tem resistido a todos os meus esforços para sua recuperação. Seus pais são muito ricos, e já tentaram tudo que é possível, sem resultado. A esperança deles, agora, somos nós. Você reparou como ambos estão envelhecidos? Há dois anos que a vida deles é um inferno por causa desse filho. Eles têm outros dois filhos, mas é o Waltinho que está acabando com eles. Você não pode imaginar a humilhação que esse casal tem passado por causa dele. Desaparece de casa, e os dois passam dias e dias à sua procura, acabando por encontrá-lo num calabouço, numa delegacia ou em uma maloca de marginais. Calcule isso para um casal fino como eles, e na posição social em que se encontram!... Na semana passada, eles foram severamente advertidos por um delegado de polícia: seu filho, além das drogas, tem implicações políticas está envolvido em processos de subversão.
- Neiva, – indaguei – que quadro triste é esse, desses meninos! A que você atribui essa situação? Pelo que tenho visto aqui no Vale, e pelo que tenho lido e ouvido, ela é muito pior do que parece. Não sei se é porque eles despertam mais o noticiário ou porque os outros não aparecem. O fato é que, sempre, a gente sabe desses casos envolvendo famílias de nomes respeitáveis. Outro dia, li nos jornais que um homem importante repudiou seu filho publicamente. Você pode imaginar o que se estaria passando no coração desse pai? E os outros casos, em que temos tomado parte, nestes últimos tempos? Como você explica isso?
- Mário, – respondeu – parte desse problema é devido à educação, à vida que levam os pais, no que chamamos de sociedade. Essa parte você sabe melhor que eu: modificações sociais, progresso técnico, meios de divulgação e todas essas coisas que têm trazido mudanças tão violentas. Mas, o cerne do problema é puramente espiritual.
- Bem, – disse eu – no que se refere à sociedade e questões de progresso, há muitas explicações de sociólogos, psicólogos e educadores, mas nenhuma delas satisfaz. Veja o caso de Waltinho, por exemplo. Segundo me dizem seus pais, eles têm três filhos de idades aproximadas, e o único que está dando trabalho é o Waltinho.
- Não é bem assim, Mário. Já vi o quadro dessa família, e esses meninos estão, mais ou menos, na mesma situação. Os pais os julgam melhores porque eles disfarçam suas angústias. O foco de atenção é o Waltinho, devido à forma como a angústia dele se manifesta. Não disse nada a eles, mas um outro filho, de cujo nome não me lembro, está resvalando para o homossexualismo e a família ainda não sabe disso. Toda essa geração está sofrendo dos mesmos males.
- Então, Neiva, não há solução? Isso terá que ser assim, sem possibilidades?
- É lógico que tem solução. Você já se esqueceu do caso dos hippies?
- É, Neiva, de fato o que aconteceu com eles foi maravilhoso. Mas, me parece que eles não tinham os mesmos problemas do Waltinho ou do irmão dele.
- Não tinham? Mário, você nem queira saber! Eu é que sei, que conversei com eles individualmente. Os problemas deles eram tão graves como os de Waltinho. A diferença é que eles se desligaram das famílias, e saíram perambulando pelas estradas. Já Waltinho é mais introspectivo, mais minado. Com o nomadismo, os hippies se juntaram em grupos, o que lhes deu mais liberdade e mais força. Só que aquela alegria forçada escondia corações que sangravam. É por isso que eles adotam aquela atitude e linguagem agressivas, aquela aparente indiferença pela sociedade. Na verdade, eles já haviam desistido de encontrar qualquer solução para a sociedade que conhecem. Quando falo sociedade, eu falo de toda organização social, com seus psicólogos, sociólogos e sacerdotes. Você se lembra dos "bailes” que recebia deles, em matéria de conhecimento de doutrinas, religiões, livros, filosofias e práticas iniciáticas? E por que nenhuma dessas coisas solucionou o problema deles?
- Talvez, Neiva, porque sejam espíritos ruins, destruidores, que vieram mesmo para acabar com tudo, você não acha?
- Não, Mário, não acho. Os espíritos deles não diferem dos outros espíritos. Alguns são bons e outros são ruins, ou melhor, alguns são mais evoluídos e outros menos. A explicação não está nesse ponto, se é que você quer uma explicação.
- É lógico que quero, Neiva. Se tivermos uma explicação para esse fenômeno, iremos ajudar a solucionar o problema, como, aliás, temos ajudado a tantos pais e tantos filhos, sem falar no caso dos hippies.
- Bem, Mário, para entendermos isso é preciso nos colocarmos na posição certa. A Terra está saindo de um ciclo evolutivo, de mais uma volta na roda do destino. Estamos no limiar do Terceiro Milênio. Quando digo milênio, falo, apenas, de um nome com que se convencionou chamar a nova forma vivencial, a nova civilização. A atual já produziu seus frutos, já se exauriu e, como nos ciclos biológicos, produz a semente do futuro, da perpetuidade, da continuação para o infinito. Ora, quando falamos em civilização, estamos falando das conquistas, da média evolutiva que está contida nos indivíduos, no espírito que compõe a humanidade. As coisas, as conquistas da civilização não existem por si, mas, sim, nos espíritos. Lembra do Mestre Jesus, quando disse que não acumulássemos tesouros na Terra, porque são perecíveis? Pois bem, se a civilização está nos indivíduos, nos espíritos, ela está tanto aqui, na face da Terra, como está nos outros lugares onde haja espíritos, certo? E se os espíritos são os portadores da civilização, eles também são portadores de tudo que ela contém, das coisas que conceituamos como boas ou julgamos que sejam más.
- Mas, Neiva, – aparteei – se isso acontece assim, então não haveria progresso, não haveria evolução. Se os espíritos vão e vêm, encarnam e desencarnam, e são, sempre, portadores das mesmas coisas, isso não faz muito sentido.
- Calma, Mário. Você já se esqueceu das coisas que conhece do mundo espiritual? Ao passarem pelos planos astrais, mentais e etéricos, os espíritos aprendem, têm novas perspectivas, e vêem, com mais clareza, os problemas da sociedade. Isso tanto acontece no sentido individual – os espíritos se esclarecem sobre seus próprios problemas – como no sentido coletivo e social. É assim que eles trazem novas conquistas, novas formas civilizatórias. Faz-se necessário um esclarecimento: a civilização não se manifesta de maneira uniforme e ao mesmo tempo. Na Terra, o ciclo é composto de um princípio e um fim, e é por isso que nós podemos separar uma parte do infinito em termos de Segundo e Terceiro Milênios. Sempre a civilização se colocou assim, para dar oportunidade a espíritos em todos os graus evolutivos. Temos, assim, os grupos, as religiões, as famílias espirituais, as falanges, os países e as civilizações. Por isso falamos em civilização mediterrânea, civilização européia, civilização antiga, etc.
- Bem, Neiva, acho que começo a compreender. Estamos habituados a tomar por um todo o que nos é conhecido de imediato, e esquecemos daquilo que não ocupa o campo de nossa consciência.
- É mais ou menos assim, Mário, e é por isso que a gente confia na direção dos Mentores e Guias. Subentendemos que eles, tendo uma visão global, mais ampla, podem estabelecer as diretivas consoantes com o geral. Mas, voltemos à civilização. Os espíritos não são limitados pelas questões geográficas, como os encarnados. De acordo com seus planos e destinos, podem encarnar onde lhes for destinado ou se destinarem. Assim, nós podemos entender porque algumas civilizações progridem e outras estacionam, havendo, até mesmo, aquelas que regridem, em termos civilizatórios. Repare o caso de nosso País. Dizem que somos um País jovem e do futuro, e isso é, realmente, assim. Mas, por que?
- Sim, – perguntei – por que?
- Você vai estranhar um pouco a resposta, Mário. Nosso País é jovem porque está recebendo, em sua civilização, espíritos velhos!
- Essa, agora, foi forte, Neiva. Espíritos velhos?
- Sim, Mário, espíritos velhos, experientes, tarimbados, evoluídos, e que já vêm preparados para enfrentar o novo ciclo que se aproxima. Essa é a verdade, e não estranho o seu espanto. É difícil conceber que no Brasil, particularmente nas regiões mais novas, como é o Planalto Central, em que moramos, estejam nascendo, neste mesmo instante, espíritos veteranos de muitas eras civilizatórias.
- Bem, Neiva, até aí acho que posso entender. Mas, uma coisa me resta entender. Se esses espíritos são assim tarimbados, se trazem consigo a experiência de milhares de anos, por que este conflito todo? Por que este abismo entre as gerações, de que tanto se fala? Experientes como são, não teriam eles meios de evitar essa situação dolorosa?
- Mário, meu amigo, você já viu parto sem dor? Sim, existe, mas não o parto sem sofrimento, e assim é na civilização. É lógico que, se esses espíritos são os precursores de novas formas de vida, eles têm, necessariamente, de entrar em conflito com as velhas formas. Note-se, ainda, o fato de que eles são os primeiros, os pioneiros das idéias novas, mas que estão mergulhados num mundo de coisas velhas e superadas. Dentro de si eles trazem o mesmo conflito que se exterioriza na sociedade. Daí os choques e a ânsia de liberdade desses jovens. Se considerarmos que os mesmos espíritos, portadores da nova civilização, são relacionados com os outros, os não pioneiros, os que estão partindo e não chegando, compreenderemos melhor o conflito.
- Mas, Neiva, onde fica, nisso tudo, a questão cármica, a faixa de reajustes?
- Uma coisa não invalida a outra, Mário. O fato de uma pessoa ser militar, médico ou astronauta, não quer dizer que ele não seja, também, filho ou pai. Por isso, um espírito que venha para este planeta, com novas idéias, não significa que ele deixe de possuir sua família espiritual, seus cobradores e seus credores espirituais.
- Essa é uma idéia difícil de aceitar, Neiva. Custa-me crer que espíritos assim evoluídos produzam fatos como esse de Waltinho e outros semelhantes.
- Mário, por mais evoluído que seja um espírito, quando ele se submete às condições de encarnado passa a ser regido pelas leis que comandam este plano. Se meditar sobre isso, vai entender o porquê da vida de Jesus e de todos os líderes de todos os tempos. O ser encarnado age através de uma personalidade transitória, submetida às leis físicas e psíquicas do seu meio. Mas, seu espírito transcendental traz, em si, as coisas que pertencem a leis mais amplas, às leis do espírito. Note que esses jovens, quando encontram um equacionamento, quando sobrevivem aos fatos destrutivos, se realizam de  maneira extraordinária e feliz. Na verdade, nossos olhos estão sempre voltados para os jovens que estão no seu aspecto negativo. Por isso, seria bom que nos voltássemos para os mesmos jovens, no seu aspecto positivo. Você mesmo, Mário, viveu aquela experiência notável, quando aqueles jovens, em conflito com boa parte da sociedade, principalmente com seus pais, mostraram-se capazes de entender e viver a Lei do Amor e do Perdão do Cristo. Devemos é procurar ampliar as nossas perspectivas e ter tolerância, muita tolerância. Temos que considerar que esses espíritos estão chegando a um verdadeiro campo de batalha. Repare como estão crescendo e sendo educadas as nossas crianças, em meio a instituições que se desmoronam, da mesma forma que milhares de crianças estão sendo geradas e criadas no meio de guerras e destruição, como, hoje, na Indochina. Você acha que as outras, aquelas que não estão nas regiões atingidas pelas guerras, não são também afetadas?
- É lógico que são. – pensei eu – Quem, hoje, não é afetado, de uma forma ou de outra, pelo que se passa no mundo?
- Outro fato para o qual chamo sua atenção, Mário, é o que se refere aos espíritos que estão reencarnando nesta parte do mundo. Em sua maioria, são oriundos da Europa, e tiveram muito pouco tempo nos planos espirituais.  Todos eles desencarnaram em plena guerra. Entre nós existem, atualmente, milhares de alemães, americanos, russos, japoneses, judeus e todas as raças e povos que lutaram entre si.
- Devagar, Neiva. – pedi – Devagar, porque essa idéia traz implicações demais. Se esses espíritos participaram da última guerra mundial, quaisquer que sejam suas posições de civis ou militares, eles têm motivos de sobra para serem revoltados. Meus Deus! Posso imaginar o que será a mente de um jovem traz recordações inconscientes, mal apagadas pelo curto tempo de permanência no plano espiritual, de um conflito que, até hoje, é duvidoso nas suas perspectivas! É, Neiva, assim a gente é obrigado a lhes dar razão em muitas coisas.
- Somente em algumas, Mário, não em todas. Não se esqueça de que eles, nas suas variadas posições, sempre agiram obedecendo ao seu livre arbítrio. Foram bons ou maus, de acordo com suas próprias decisões. O que temos que considerar é o aspecto traumático, a recordação recente, que explica certas coisas, mas não as justifica. É lógico que, se tomarmos isso em conta, muda muito a nossa atitude em relação a eles. O conflito é maior porque o padrão de referência, na educação, ainda é o velho materialismo, pressupondo que o ser humano é inteiramente novo, “zero quilômetro”. Talvez esse padrão tenha servido em outras eras, mas, agora, está superado.
- Mas, por que, Neiva? Os seres humanos não são, sempre, seres humanos? Os que nasceram há um século não tinham, também, suas reservas de memória espiritual?
- Sim, o ser humano encarnado é basicamente o mesmo. As condições de encarnação é que mudaram. Não se esqueça de que a transição do Segundo para o Terceiro Milênio não é, somente, uma transição civilizatória, pois está havendo uma modificação de posição planetária na relatividade sideral. Fenômenos extraordinários estão acontecendo, como, aliás, já aconteceram em outras épocas, só sendo percebidos por alguns espíritos, conforme a área em que se manifestam. Na nossa área, o fenômeno mais extraordinário é o da mediunidade. Sim, as condições mediúnicas do planeta, há um século, eram bem diferentes das condições atuais. Em suas aulas, Mário, você afirma que a mediunidade é um fato físico, biológico. É verdade, e, dessa forma, ela tem que, necessariamente, ser afetada pelas alterações planetárias.
- Acho, Neiva, que, na verdade, o ser biológico está sendo muito pouco afetado pelas modificações que se operam. Se nos basearmos na Biologia, somos obrigados a reconhecer que as transformações se operam lentamente, em termos de milhões de anos.
- De acordo. Mas lembre-se de que falamos de mediunidade como um fato de base biológica, quer dizer, que tem suas raízes na organização sangüínea e no sistema nervoso. Suas manifestações são energias que ligam dois planos, um visível e um invisível, o plano do físico e o do espírito. Ora, se pensarmos em termos de dinâmica, as modificações psíquicas são muito mais rápidas que as do plano mais denso. É isso, aliás, que precisamos entender, se quisermos socorrer nossos irmãos, especialmente os jovens. Nas atuais condições físicas e espirituais, sua força mediúnica se manifesta muito mais cedo, e com mais intensidade, e esse é o fator determinante das suas atitudes. É essa energia que lhes permite a coragem e a independência com que se manifestam no mundo atual, independentemente de fatores morais ou intelectuais. É por isso que sabemos de movimentos jovens destrutivos, virulentos e absurdos. A força tanto age num sentido como em outro. O que é preciso, antes de tudo, é assumir posição realista diante desses problemas. Temos que, necessariamente, abandonar as formas complicadas de verificação, nos baseando nas formas simples, na observação do quotidiano, na observação de nós mesmos. O melhor laboratório que existe na Natureza é o nosso – eu, você, ele – e o segredo está na síntese das coisas, não nas complicadas análises. Observe o caso da educação escolar. Sabemos e verificamos todos os dias, que as crianças se comunicam com o meio-ambiente pela mediunidade. Com isso, elas entram em contato com outros planos, sem distinguir o que é concreto, isto é, matéria, e o que é abstrato, imaterial. Fala com espíritos, vê espíritos, brinca com espíritos, enfim, tem um relacionamento natural com os outros planos. Entretanto, só nos baseamos, na educação em casa e na escola, em premissas totalmente diferentes! Quando falo em simplicidade, em observação do quotidiano, é para que cada um de nós as observe por si mesmo, e não fique na dependência de complicadas análises do ser humano. Conviva com as crianças, e observe os fatos considerados estranhos que se passam com elas. Quase todo pai ou mãe julga que seu filho é excepcional, que faz coisas que as outras crianças não fazem, já observou?  Aparentemente, é vaidade paterna. Na realidade, são fatos observados e filtrados por padrões de referências tradicionais. Ah! Se os educadores admitissem o fato mediúnico, quantas dores não seriam poupadas a esta pobre humanidade!...
- Mas, afinal, Neiva, o que você acha que deveria ser feito nesse sentido? Nota-se que, ultimamente, há grande interesse nos assuntos espirituais, preconizando-se, mesmo, que as Ciências Espirituais irão predominar, em interesse, sobre a Ciência tradicional. Você acha que isso está acontecendo e é verdade?
- Não sei!... É difícil termos a perspectiva certa da guerra quando se está no campo de batalha. O que podemos fazer é estarmos preparados para o futuro e trabalhar no presente. Observe o que está acontecendo, e veja, com cuidado, os fenômenos que se apresentam pelos que vêm em busca do socorro espiritual. Compare os fatos com as profecias, quaisquer que sejam as formas como essas profecias se apresentam. Lembra quando nossos Mentores nos avisaram que os fenômenos cósmicos, as transformações da Terra, teriam maior intensidade em 1984 e, constantemente, eles nos falam no Terceiro Milênio e mencionam esse ano? Pois bem, Mário. Observe nos jornais, revistas e livros como essa data é mencionada com insistência, quando se referem a fatos futuros. Existe até um livro de ficção científica com essa data como título. Acrescente a isso as constantes referências a fenômenos meteorológicos fora do comum, fatos estranhos em psiquismo, mensagens aparentemente absurdas, a eternidade dos conflitos bélicos, as constantes violências, enfim, toda a gama de fatos e ocorrências que indicam anormalidade. Repare, também, como as mensagens dos Evangelhos vão se tornando reais, de como sua autenticidade salta aos nossos olhos com facilidade. Tudo isso gera, espontaneamente, o interesse humano para as coisas espirituais ou, como você diz, para as Ciências Espirituais. Quanto ao que fazer, Mário, é problema essencialmente individual. Cada ser recebe os estímulos à sua vivência de acordo com sua programação cármica e missionária. Seu problema é ser coerente com isso. A maior parte da angústia individual não reside na situação da humanidade e, sim, na sua posição em relação a isso. No meio do maior conflito, o Homem pode ser feliz e tranqüilo, desde que esteja coerente com o seu próprio destino. Para isso, é necessário, apenas, que ele ouça a voz íntima da própria consciência e aja de acordo com ela. Buscar a solução numa religião ou filosofia, como quem compra uma roupa feita, já é uma atitude fora de moda. Todo Homem tem que encontrar a sua religião, sua doutrina ou sua filosofia. Se ela coincidir com a de outros, tanto melhor. Esse problema é simples, mas fundamental. Todos somos ligados a famílias espirituais, no seio das quais convivemos milênios. Nosso problema é encontrar, na presente situação, a nossa família e trabalhar junto com nossos irmãos. Quanto aos jovens de hoje, a afirmação é tranqüila. Eles são os precursores do Terceiro Milênio. Sejam bons ou maus, estão sempre à procura de algo que ainda não se definiu. Não vamos condená-los por isso. Nós somos da geração do Segundo Milênio, da Era do Amor, da Humildade e da Tolerância, e nos compete agir de acordo com essas premissas. Eles são os pilotos que vão decolar para o futuro. Nós somos os construtores, os mecânicos, os meteorologistas, e construímos os campos para a decolagem deles. Do acerto de nosso trabalho depende o sucesso da missão deles.
- Neiva, essas palavras: Amor, Humildade e Tolerância, sintetizam toda a Doutrina de Jesus. Será que ela não serve para eles?
- Serve, Mário, enquanto eles estão na tônica deste milênio, na emanação de produtos do meio. Mas, ao mesmo tempo em que ouvem a Doutrina de Jesus, eles vêem uma realidade disforme, que não corresponde a isso. Procure compreender, e se colocar no lugar deles. Sabemos que a Doutrina seria incoerente se o mundo não fosse como é. A Doutrina do Cristo, tomada no seu sentido universal, se aplica à humanidade enferma e visa sua saúde. Aplica-se à humanidade como ela é, são qualidades preconizadas para certos defeitos. Subtende-se que essas enfermidades já não existirão no Terceiro Milênio, sendo substituídas por outros obstáculos evolutivos, o que exigirá outras formas de comportamento. Na Espiritualidade se diz que as siglas para o Terceiro Milênio serão: Deus, Paz e Fraternidade. Observe essas três palavras, e veja como elas são coerentes, como complementação, etapa seguinte das atuais. A Humildade nos leva à sabedoria, ao conhecimento, a sentir Deus. Teremos, então, não um Deus abstrato e antropomórfico, mas um Deus real, visível, mais palpável. O Amor nos leva à tônica da Paz, da tranqüilidade ativa. E a Tolerância nos leva à Fraternidade, a viver bem com nossos irmãos. Creio que isso dá para entender o futuro. Essa civilização se exaure pelo término de uma tarefa crística. Os espíritos que alcançarão a próxima etapa evolutiva vão viver de acordo com ela. Os que não conseguirem, serão atraídos, por afinidade, para as etapas onde ainda permanecem. Cada um terá a oportunidade, de acordo com seu padrão vibratório. Quanto ao planeta físico, ele ganhará uma espécie de promoção, o direito de ter em seu seio espíritos em harmonia com sua situação cósmica. Se o eixo da Terra se endireitar, como parece que vai acontecer, teremos um regime climático diferente, muito mais regular. Talvez, então, o planeta corresponda ao paraíso bíblico e a vivência seja mais fácil, de modo a facilitar a existência de Deus, Paz e Fraternidade! O que se vê, na juventude de hoje, é, justamente, a busca desse paraíso. Por enquanto, o fazem na base deformada das drogas, fugas das normas sociais, na licenciosidade. Em pouco, o farão na base de rotas mais seguras. Sejamos pacientes!...
Eu acabava de registrar esse longo diálogo com a Clarividente, a missionária de olhos infinitos, e quedei-me a pensar. Rostos jovens e sorridentes passavam pela minha memória. Lembrei-me de seus gestos, de seus olhos às vezes tristes, da ternura com que os via se abraçarem, da solidão em que viviam, e meu coração se apertou.
Lembrei-me de meus próprios filhos, soltos no mundo, distantes de mim, e senti imenso amor por todos eles. Arrependi-me dos meus momentos de intolerância às suas músicas estridentes, seus trajes bizarros, seus colares coloridos, suas pretensões intelectuais, sua linguagem abusada, sua irreverência às nossas autoridades e aos nossos sistemas políticos, e desejei que eles continuassem nos visitando, aqui no Vale do Amanhecer. Graças a Deus, eles voltaram várias vezes, e aqui estaríamos nós, os missionários do Segundo Milênio, preparando-lhes o caminho para o Terceiro Milênio!

M  I  S  S  à O

A matrona era portadora de dois diplomas universitários e fumava longos cigarros. Não fora seus trajes, seria tomada por um velho professor. Sua voz abaritonada, ressaltada por um busto generoso, contribuía mais ainda para essa impressão. Preparei-me para uma agradável incursão no mundo da cultura e dos livros, justificada pelos títulos e pelo estabelecimento onde a ilustre senhora vivia sua vida profissional.
Após as amenidades iniciais, o assunto que ela trouxe à baila assustou-me. Sua preocupação era com um jovem que, dias antes, estivera no Vale. Desejava falar-me sobre ele. Pedia-me discrição sobre sua visita, que visava, apenas, o bem do rapaz. Agradou-me aquele interesse por ele. O rapaz, um belo espécimen da nossa época, procurara o Vale a fim de equilibrar certos problemas íntimos, e consultara a Clarividente no sábado anterior.
Apenas me assustara um pouco o fato daquela senhora não ser sua mãe, como supus a princípio, mas apenas uma colega de trabalho e amiga da família. O diálogo, educado e fino, aos poucos extravasou numa corrente de sentimentos frustrados, e ouvi, estarrecido, uma confissão de amor mal retribuído. Aos poucos, a figura portentosa e acadêmica transformou-se num pobre ser humano de pouca compostura, com um recorde de quase um maço de cigarros fumado em poucos minutos. Até a linguagem caiu no lugar-comum dos chavões e gírias. Várias vezes tentei interromper a cena desagradável e fora da minha área de atendimento, mas não consegui.
Quando ela terminou, levantou-se e saiu, chiando os pneus do carro vistoso numa violenta arrancada. Permaneci por algum tempo pensativo e chocado. Sempre ouvira falar de casos estranhos – Neiva os atendia constantemente – mas ela nunca nos dizia quem eram as pessoas, e sua discrição apenas nos fazia imaginar os personagens daqueles enredos bizarros. Este, porém, me afetara diretamente. Quando saí do meu estupor, fui procurar Neiva, e contei-lhe o acontecido. Ela me ouviu em silêncio e, quando acabei, ela se pôs a falar:
- É, Mário, a vida de um missionário é complexa e difícil. No meu trabalho de Clarividente e confidente, vivo entre impactos de consciência e decisões delicadas. Meus sentimentos são testados a todo momento e, às vezes, não sei se estou agindo pelo coração ou pela mente.
- Coração e mente!... Neiva, como você pode estabelecer a diferença entre o coração e a mente? No fundo, as duas coisas não são uma só?
- Não, Mário, vou explicar: se estou mediunizada, vejo analiticamente, analiso o problema junto com as entidades que me assistem. Meus sentimentos pela pessoa que me consulta ficam relegados a um segundo plano e, durante a entrevista, posso estabelecer diretivas coerentes com a realidade daquela pessoa. Vou ilustrar com um caso que aconteceu nesses dias, para que melhor me entenda. Fui procurada por uma senhora, de uns quarenta anos, de aspecto fútil. Júlia viera se queixar de sua vida e, segundo me disse, seu esposo era epiléptico e aposentado por um órgão público de Brasília. Disse que sofria muito com ele, e passava grandes dificuldades financeiras, pois ele ganhava muito pouco com sua aposentadoria. Nem bem acabara de falar, e vi que estava mentindo. Pelo quadro que se delineou na minha clarividência, o marido dela era um profissional de Eletrônica e ganhava um bom dinheiro, além da aposentadoria.
         - Diga-me, Neiva, – interrompi – você não se zanga quando as pessoas que a consultam mentem?
         - Não, Mário, eu não me zango. Apenas, fico com pena delas, pois percebo que mentem porque estão sofrendo muito, acreditam que são boas, e mentem para despertar maior comiseração, maior interesse. A desonestidade deles, nesse caso, só prejudica a eles mesmos, pois só são desonestos consigo mesmos. Tão pronto ela me “vendeu” a imagem de vítima de um marido infeliz, ela entrou no assunto que, realmente, a trouxera até mim, e que sua língua coçava para me falar. Dando à voz um tom confidencial, perguntou se o seu amante era sincero no amor por ela e se valeria a pena continuar enfrentando os riscos da descoberta deste amor clandestino.
- Isso me parece absurdo! – interrompi novamente – Uma Clarividente, em certo sentido, uma religiosa, se prestar a assuntos dessa natureza?
- Mário, Mário... Por acaso tenho o direito de julgar ou ser juiz de alguém? Conheço os caminhos cármicos. É lógico que tenho meu ponto de vista, e, graças a Deus, minha formação cristã é no íntimo de meu coração. Porém, minha mente preparada compreende e ama todos os que sofrem. Esses, os que se apresentam com deformidades morais ou psicológicas, são aos que dedico mais atenção. Sinto a vergonha de que estão possuídos pelos seus casos. É por isso que, antes de se abrirem, já começam a se justificar, como a mulher de que estou falando.
- E seu conselho, Neiva, em que sentido se orienta? Você sugere que deixem seus amores clandestinos?
- Não, Mário, elas não me pedem conselhos, e, sim, ajuda. E eu as ajudo em tudo o que me pedem, com todo o carinho. Esse é um ponto fundamental da Doutrina, como a praticamos aqui. Não nos compete julgar, pois cada um tem o seu carma, o seu destino e o conceito das coisas. Podemos ajudar uma pessoa com toda tranqüilidade, e deixar sua vida por conta dela mesma e de seus Mentores. O que não se pode é subordinar o auxílio espiritual a conceitos preestabelecidos da moral ou de como achamos que as coisas devam ser. Deixemos isso por conta de Deus e dos seres que criou. Mas, é lógico que a gente não age assim, com total indiferença ou vazia de preconceitos. Sou um ser humano, meu coração é atingido pelas vibrações, sinto simpatias ou antipatias, me irrito ou me alegro, conforme a pessoa ou o assunto. Às vezes, os problemas são tão complicados que as entidades não sabem que direção indicar, e como acontece muito, deixam por minha conta indicar um caminho ou outro. É nessas horas, Mário, que surge o problema do coração e da mente. Veja o caso dessa mulher. Do jeito como abordou o assunto, provocou-me, de imediato, antipatia e repugnância, mas reagi, e procurei ver seu quadro, vítima de seus próprios erros e deformações. Senti por ser ela o infeliz instrumento de evolução do esposo. Poderia, Mário, se quisesse me ver livre do problema, prometer ajudá-la e deixar que ela seguisse seu destino. Mas, minha mente reagiu, e lhe disse que trouxesse o esposo para me consultar. Ela foi embora, e, alguns dias depois voltou com o marido, chamado Moacir. Vi seu quadro, e o convidei para trabalhar mediunicamente. Ele se harmonizou conosco e, pouco tempo depois, ela veio me pedir para recebê-lo, aqui no Vale, como interno. De fato, ele apresentava um aspecto lastimável. Viciado em álcool, tinha crises horríveis de epilepsia. Depois de alguns dias de tratamento, verifiquei o quadro dele, e vi que a razão de sua embriaguez eram tremendos recalques, agravados pela epilepsia. Ele desabafou comigo. A esposa era um verdadeiro algoz. Casara-se com ela há treze anos. Era viúva, e tinha um casal de filhos, do primeiro casamento. As crianças eram revoltadas com ela, devido à maneira pela qual tratava o marido. Quando ele tinha os ataques, ela o maltratava e o humilhava. Aos poucos, ele foi se equilibrando. Tirei-lhe o hábito da bebida e ele rareou os ataques. Chegou o dia em que estava pronto para retomar sua vida. Era outro homem, saudável e bem disposto. Como de costume, antes de receber alta, fez uma consulta comigo.
- E você, o que fez? Contou o tipo de mulher que era sua esposa?
- Não! Minha missão é juntar e não separar as pessoas. Entretanto, devido ao juramento dos meus olhos ao Cristo, não posso dizer uma mentira ou induzir uma pessoa ao erro. Isso se aplicava tanto a ele quanto à mulher. Por esse juramento, não podia trair o segredo dela. Aconselhei-o a ter paciência e carregar seu fardo da melhor maneira. Moacir voltou ao lar outro homem. Querendo recuperar o tempo perdido, dedicou-se ao trabalho e à vida doméstica, procurando amar aquela esposa que tanto o fizera sofrer. Júlia, porém, não correspondeu a esses propósitos. Moacir, que se tornara entusiasta do Mediunismo, procurou doutrinar Júlia, mas esta demonstrou verdadeira aversão ao Espiritismo. O pior é que ele, agora, se tornara mais inconveniente para ela. Seu amante era inquilino do casal, morava num quartinho alugado, nos fundos da casa. Isso provocava situações embaraçosas, e a vida virou um inferno, pior do que antes. Chegou o dia em que, não podendo mais suportar a mulher, Moacir saiu de casa, e foi morar na casa de um amigo recente, médium da Corrente, que tinha três irmãs solteiras. Seis meses depois, Moacir se apaixonou por uma delas, Elza, a mais velha, já com trinta e seis anos. Correu a me pedir conselho, e vi que Elza era usa alma gêmea, e Moacir o seu primeiro amor. A partir daí, entrei naquela faixa difícil de ter que decidir as coisas para os outros, e me debater entre a razão e o coração. Diante de mim estavam dois seres apaixonados, inteiramente confiantes nos meus conselhos. Caso Moacir se casasse com Elza, ele se equilibraria e se libertaria até mesmo dos ataques epilépticos, por muito tempo. Por sua vez, Elza viera a este mundo quase que, exclusivamente, para ser suporte de Moacir, ajudando-o a percorrer o resto de seus dias. Percebendo minha vacilação em decidir suas vidas, todos os dias ela me procurava e me pedia que autorizasse o casamento deles no Templo. Se eu negasse, estaria, tranqüilamente, cumprindo com meu dever moral, sem me sujeitar a qualquer crítica. Mas, desaconselhando, estaria interferindo no livre arbítrio do casal e no destino cármico da outra personagem, Júlia, sua cobradora e esposa. Que fazer numa situação dessas?
- E como decidiu? – perguntei.
- Estava nessa agonia, vivendo o problema dos dois, todos os dias, quando minha querida Mãe Etelvina, a profetiza de nossa tribo, teve pena de mim e veio em meu socorro, pedindo que dissesse a eles que seu casamento era do gosto de Pai Seta Branca! Meu alívio foi grande. Por prudência, pedi aos dois um prazo de trinta dias, pois iria tentar obter o desquite de Júlia e Moacir, embora soubesse que iria ser duro consegui-lo. Enquanto isso, Júlia já estava começando a se desiludir do amante, e se arrependeu de ter deixado Moacir sair de casa. Tanto que negou o desquite. Quando comuniquei este fato a Elza e Moacir, eles não titubearam. Pediram a minha bênção e foram embora de Brasília, indo começar nova vida na fazenda da mãe de Elza.
- Neiva, – disse eu – só quero fazer uma pergunta: Júlia e Moacir eram casados ou, apenas, vivam juntos?
- Casados, Mário, casados com todos os sacramentos. Como é difícil a gente ter que decidir entre uma visão real, autêntica, das coisas, e outra, a social. De acordo com o padrão comum de referência, eu nunca poderia ter sancionado aquela irregular situação social. Problemas como esse se apresentam a mim quase todos os dias...
- É, Neiva, isso sugere inúmeras reflexões. Realmente, tenho visto o número de casais irregulares, perante a sociedade, que vive em torno de nós, e aceitamos isso com naturalidade. Qual, realmente, a nossa posição diante da família?
- Nossa posição é muito segura e bem definida. A família, o lar, na presente faixa evolutiva da humanidade, é o lugar de maiores reajustes. Não que esse núcleo da vida social não o fosse assim, antes. Só que, na presente situação cármico-mediúnica, os reajustes adquirem aspecto mais contundente, de atritos mais violentos e o problema é mais generalizado. O que dá maior realce a esses reajustes é, justamente, a visão irreal do problema. A simples posição de pai ou de mãe não torna uma pessoa necessariamente boa ou má. Digamos que exista, atualmente, uma instituição exagerada, uma estereotipação, um papel demasiadamente compulsório. Vemos o pai, a mãe e os filhos, mas não se vêem os seres humanos que estão por trás de cada um. Com o relaxamento dos costumes e hábitos familiares, é perfeitamente natural que as pessoas tenham mais oportunidades de serem elas mesmas, e manifestarem suas tendências boas ou más. É preciso, pois, que olhemos, antes de mais nada, o ser humano, o espírito com sua trajetória cármica e sua posição em relação aos familiares. Só o reconhecimento objetivo dos verdadeiros papéis de cada um dos componentes é que pode levar à elaboração de um juízo das ações de cada um dos membros. Repare, Mário, como todas as queixas que se ouvem a respeito dos parentes, são justificadas pela ausência de um comportamento padrão. Queixam-se as esposas incompreendidas ou abandonadas: meu marido não pára em casa, não me dá dinheiro ou não me deixa tirar carteira de motorista. Dizem os esposos insatisfeitos: minha mulher vive no telefone, não cuida dos filhos, deixa as empregadas à vontade, etc. Na verdade, Mário, nada disso é realmente assim como eles dizem. O que existe é um fator de ação desconhecido, uma energia não percebida, agindo entre eles: o fator mediúnico. Ora, mediunidade e carma são acontecimentos paralelos. A mediunidade é uma energia que estabelece relação com o transcendental, isto é, o ser humano entra em contato com o mundo invisível do espírito mediante a energia mediúnica, ectoplasmática. Essa energia, atualmente, está mais ativa em face do fim da oportunidade, o fim dos tempos, como se diz.
- Você quer dizer com isso, Neiva, que os conflitos familiares, a desagregação familiar, o conflito entre pais e filhos, os desquites, os crimes por razão de família, tudo isso pode ser atribuído à mediunidade?
- Se falarmos em termos carma mais mediunidade, sim. Por exemplo: uma exemplar mãe de família vem se queixar do comportamento de seu filho. Ela sempre cumpriu com seus deveres maternos, dando aos filhos a melhor das oportunidades. Um de seus filhos, porém, transformou-se num marginal e vive infernizando sua vida, revelando profundo ódio por ela. Se olharmos o problema no plano puramente humano, nada, nenhuma filosofia ou lógica poderia justificar isso, concorda? Porém, se contarmos com o fator cármico-mediúnico, teremos novo panorama: o filho poderia estar em contato com entidades obsessivas, cobradores; ou teria seu psiquismo afetado pela mediunidade reprimida; ou, em encarnações anteriores fora repudiado por esta mesmo espírito que, hoje, está encarnado como sua mãe; ou se trataria de vítima de violências, até mesmo de morte, praticadas no passado por sua atual mãe; etc. São as hipóteses que se apresentam quando admitido o fator transcendental. Se conseguirmos verificar isso, equilibrar o psiquismo do rapaz, mostrar à mãe a dívida que ela tem com esse espírito, que hoje é seu filho, equilibrar o fator mediúnico dela, enfim, dar todo o amparo que a Ciência Espiritual pode dar, quando guiada pelo amor crístico, pelo Evangelho, podemos fazer com que o problema se dilua e, talvez, até desapareça. Você sabe, Mário, muitas vezes isso acontece em nosso trabalho!
- Sei que nós aqui, por meio da sua clarividência, podemos equacionar rapidamente um problema, Neiva. Mas, e os outros, que não dispõem de uma clarividente? Como agiria uma pessoa comum, que não conheça o Espiritismo ou o Mediunismo, ou pior, que tenha uma posição contrária a isso, e que, porventura, esteja lendo estas palavras?
- Você quer dizer alguém que tivesse problemas semelhantes a esse?
- Sim, uma pessoa que não acreditasse em Espiritismo, mas que estivesse vivendo a agonia de um problema familiar. O que poderia ela fazer para aliviar o seu quadro, tendo-se esgotado todos os recursos de seu meio?
- Mário, como funciona a mediunidade, como é seu mecanismo natural? Como as pessoas devem agir para sair de suas angústias, se o Espiritismo existente ainda é precário e não se dispõe de uma clarividente em todos os lugares e a qualquer hora?
- Entendo o fator mediúnico, basicamente, como um fator energético de origem material, isto é, matéria que se transforma em energia. A estrutura do sangue humano ainda não é suficientemente conhecida. Creio que, um dia, os cientistas irão admitir a presença do fator mediúnico no sangue. Na minha visão de leigo, na minha ignorância científica, tratar-se-ia de algum componente especial, de produção variável, dependendo de determinadas circunstâncias, diretamente relacionadas com o sistema nervoso, criadas nos chamados plexos nervosos. Assim, como a matéria se transforma em energia no sistema de nutrição das paredes intestinais, esse componente se transformaria em energia por ação do sistema nervoso. Uma vez iniciada sua produção, essa energia começa a agir, causando uma alteração psicossomática, cujos sintomas se relacionam com a parte do sistema nervoso onde predomina. Com isso, explicamos o que é mediunidade. Os sintomas produzidos passam, a princípio, como sintomas de estresse   ou de esgotamento, psicoses e todos os estados estudados pela Psiquiatria e pela Psicanálise, até atingir a esquizofrenia e a loucura total da pessoa.
- Mário, não se esqueça de que estamos procurando responde a indagações mútuas e que as respostas são para que pessoas comuns, e não cientistas, as entendam. Sua explicação está muito boa, mas, lembre-se, eu apenas perguntei como funciona a mediunidade, no seu aspecto natural, sem a premissa da Ciência Espiritual.
- Bem, acho que tem razão, mas me parece difícil explicar um funcionamento sem entrar no seu mecanismo. Vamos, então, tratar o assunto com uma visão mais exterior, mais comum. Todos os seres humanos apresentam distúrbios psicológicos e físicos, e isso acontece independentemente de Espiritismo ou da admissão de qualquer fator dito sobrenatural. Quando os fatores se apresentam, o clínico, seja psiquiatra ou não, examina os sintomas e os classifica, segundo conceitos estabelecidos pela Medicina. Mas, quem pode avaliar os problemas de conflitos entre as pessoas? O sacerdote, o professor, um livro ou uma filosofia? Na verdade, os conflitos familiares não encontram explicações que, pelo menos, amainem ou que os resolvam, dentro da ciência médica atual. Volto, agora, à mediunidade. O conflito, principalmente em família, produz uma série de alterações no comportamento do indivíduo na sociedade. É o homem que brigou com a esposa, e chega ao trabalho nervoso e intolerante; o estudante que falta à aula e vai para o cinema, sendo reprovado nos exames; é a mãe de família, que se sente solitária e infeliz, e cai em choro, sendo amparada por sua vizinha, etc. Quando a família se reúne para uma refeição, ou em seus quartos de dormir, enfim, quando há um encontro familiar, acontecem explosões de ira ou de revolta. São discussões violentas, educadas ou não, as ironias e, até mesmo, as agressões físicas. Em seguida, ocorre uma bonança temporária. Parece que aquele confronto provocou algumas modificações nas pessoas envolvidas, todos entram num período de calma e sobriedade. Entretanto, nenhum problema foi resolvido, nenhuma solução foi encontrada. Houve, apenas, uma descarga nervosa, uma exaustão da tensão, que pode durar horas ou dias. Na verdade, Neiva, o que houve foi uma “passagem” de espíritos, uma transferência, mediante a carga energética que se produziu no ambiente. Esse é um dos aspectos de funcionamento da mediunidade natural.
- Creio, Mário, que isso não responde à minha pergunta. Afinal, o mesmo mecanismo de tensões e descargas nervosas é comum, e qualquer pessoa sabe que, se extravasar sua ira, ela se descarrega e se abranda. Não creio que isso denuncie a presença de fatores espirituais, pelo menos para quem não acredita na existência dos espíritos.
- Não estou procurando provar a existência dos espíritos, Neiva. Estou, apenas, querendo demonstrar o funcionamento do fator mediúnico. E é justamente pelo seu funcionamento natural que ele prova sua existência. Afinal, estou afirmando que se trata de um fator biológico. Mas entendo o que você quer dizer: como levar as pessoas a admitirem que o fato, embora comum, tem características extraordinárias, fora do senso comum? É quando esses fatos se repetem e levam as pessoas ao comportamento anormal, a doenças, neuroses, psicoses, esquizofrenia e à loucura. Quero dizer, a partir do momento em que o problema extravasa o âmbito familiar e é levado ao médico, ao psiquiatra, à delegacia ou à prisão. É assim que ele se apresenta para o Espiritismo. As pessoas, atualmente, só procuram o Espiritismo quando já esgotaram todas as formas conhecidas para a solução de seus problemas. A dificuldade que encontram é, justamente, a especialização das ciências humanas. Falta uma ciência global do Homem, suficientemente sintética, e existe desconhecimento da psique humana. Afinal, a humanidade ainda engatinha nos filósofos gregos ou nas tecnologias inócuas. É por isso, Neiva, que urge levar essas idéias para a massa. Mas, levá-las como são, idéias do natural e não idéias do sobrenatural. Acho mesmo que o conceito de sobrenatural é que tem impedido um maior número de pessoas de resolverem seus problemas. Se as pessoas admitirem a presença de um fator natural, porém desconhecido, nos seus conflitos, no presente caso, na família, creio que esses conflitos teriam outra direção, ou aconteceriam de maneira diferente. Quem de nós já não participou de conflitos assim? E quantos já repararam que, após um episódio triste, ficam confusos, com remorsos, e não conseguem entender o porquê do acontecido? É verdade que, quase sempre, a gente põe a culpa do que aconteceu nos outros, mas podemos ouvir uma voz interior nos dizendo que também tivemos culpa no que ocorreu. E procuramos abafar esta voz com arrazoados e comportamentos extremados, chegando até ao uso de drogas e tóxicos. Concluímos que não existe lógica nesses conflitos e, muito menos, nas relações humanas em geral. O que se disse até aqui é tão somente a verificação do fenômeno mediúnico em seu aspecto negativo. A outra face são os ambientes que se formam pelos hábitos, preconceitos e conceitos religiosos. A história da humanidade está cheia de relatos de milagres e acontecimentos congêneres. Acrescente-se a isso os fatos de inspiração artística ou científica, os trabalhos criativos, e poderemos entender um pouco da mediunidade em seu funcionamento natural, normal, fisiológico e humano.
- Creio que com isso, Mário, teremos respondido parcialmente à questão. Se maior número de pessoas aceitarem a presença de um fator oculto nas relações humanas, principalmente nos grupos mais ligados, próximos e familiares, acho que encontrariam a solução para seus conflitos. Por outro lado, a admissão desse fator levaria as pessoas a estudarem melhor a si mesmas e ao interesse pelas coisas do espírito.
- É, Neiva, creio que isso seria um passo à frente na diminuição do sofrimento humano. Uma coisa me ocorre agora: você notou o estranho fato de que a reencarnação está sendo, cada vez mais, admitida pela Ciência? E que, justamente, a reencarnação, que afronta a Teologia tradicional e que é difícil de aceitar, está sendo admitida com mais facilidade do que a mediunidade?
- De fato, Mário, muita coisa estranha está acontecendo. A verdade é que estamos no fim de uma era civilizatória, e muitos fatos, aparentemente novos, estão sendo aceitos pela Humanidade. O principal é que haja, sempre, focos de Luz Crística disponíveis para os que buscam a Luz. Mantenhamos nossa lâmpada acesa e sigamos em frente!...

E L I E T E

Eliete chegou ao Vale do Amanhecer na garupa de uma Honda de 350 cilindradas e com um barulho ensurdecedor. Calça rancheira, cabelo mal cuidado e blusa decotada. Trazia, no rosto jovem, a marca da velhice precoce. Na dureza dos olhos guardava a indiferença gerada pelo uso de drogas e, na face, a marca das intempéries. Foi recebida com o mesmo carinho dispensado aos hippies e, de pronto, se tornou parte integrante do nosso quotidiano. Sempre cortês e com um meio sorriso de indiferença, jamais reclamou ou fez qualquer ato que a tornasse menos simpática. Gerava, porém, em todos nós, um sentimento de tristeza e de abandono. Estar perto de Eliete era como estar próximo de um abismo, de coisas sem princípio nem fim.
Nascera no Rio de Janeiro, filha de um casal jovem e feliz. Antes dela, o casal tivera um menino. A menina, loira e bonita, era como um ornamento na vivência daquele casal, tipicamente carioca, de padrão econômico relativamente estável, de vida descuidada e superficial.
Trabalho, praia, amigos e o carro do último ano eras as preocupações maiores. Eliete assim cresceu, fútil, sem maiores problemas, alimentada, em seu incipiente intelecto, por histórias em quadrinhos, com escolaridade fácil e tendo a única preocupação a de manter-se nas ondas jovens das praias cariocas. Nenhum cuidado tirava o bom-humor constante da família.
Porém, no plano astral, os Mentores se movimentavam em benefício daquele lar. A vida despreocupada os levaria ao estacionamento, à estagnação espiritual e ao não cumprimento de suas obrigações espirituais. Eliete viera com a missão de trazer, àquela família, a mão de Deus! Como missionária, fora escolhida para sacudir a situação aparentemente estável daquele lar, e teve início, então, a série de dissabores nas vidas deles. Delegacias, hospitais, escândalos e toda gama de dores trazidas pelo submundo espiritual, começaram a afligir aquelas pessoas.
Aos quatorze anos, Eliete começou a trazer os primeiros problemas: por seu intermédio, o passado transcendental começou sua cobrança naquele lar despreparado para coisas mais sérias.
Eliete conheceu Félix, rapaz estróina e filho único de uma viúva neurótica. Logo, Félix iniciou-a no mundo dos sonhos e das drogas. O plano espiritual começou, assim, a exercer sua ação catalisadora na faixa cármica familiar. Félix a preparava, “espiritualmente”, para as viagens onde viviam experiências fantásticas.
O lazer constante e a ausência de problemas econômicos lhes dava condições para o luxo de pesquisas místicas, alternadas com pesquisas eróticas, e Eliete tornou-se verdadeira sacerdotisa do vício e dos absurdos. Rapidamente, seu comportamento começou a atingir a tranqüilidade de seus pais, pouco afeitos às questões psicológicas, sem nenhuma preocupação com o mundo dos espíritos, sem religião ou qualquer outra forma coibidora.
A situação de conflito se instalou. Sem saber procurar a solução para o problema, os pais de Eliete estavam preocupados, em primeiro lugar, com a manutenção de seu status de devaneio e despreocupação. A própria Eliete facilitou uma solução: foi morar na companhia de Félix e sua mãe, passando a viver, quotidianamente, num repugnante mundo de depravação. Nesse ínterim, as vidas de seus pais entrou em franca decomposição. Embora se amassem, não tinham tolerância e nem competência para enfrentar problemas mais sérios. A situação gerada pela vida de Eliete, de agressões e acusações mútuas, fez com que o casal se desquitasse.
O clímax da faixa cármica trouxe um princípio de solução: Félix, dopado, subiu, sub-recepticiamente, na carroçaria de um caminhão carregado de madeira. Dormiu e caiu do veículo em grande velocidade, morrendo no asfalto.
Eliete vivera, na companhia dele, três anos de depravação e licenciosidade. Sem o companheiro, ficou desnorteada, e foi viver com o pai. Ambos, porém, não se toleraram por muito tempo, e ela se mudou para a casa de sua mãe, onde o quadro de intolerância se repetiu. Sem saber o que fazer com Eliete, mandaram-na para estudar na Inglaterra, onde, em vez de ir para a faculdade, juntou-se a um grupo de hippies, com os quais viveu cerca de dois anos.
Desencantada e saturada de tudo, Eliete voltou ao Brasil, e passou a perambular pelas estradas, em companhia de outros jovens nas mesmas condições. Freqüentava as praias, as tabernas e vários locais de iniciações misteriosas, com isso adquirindo deformado conhecimento do mundo espiritual e da mediunidade.
Com o cérebro atingido pelas drogas, desenvolveu mediunidade angustiada. Vivia perturbada pelos sonhos fantásticos e por inquietação permanente.
Sua incerta peregrinação a trouxe para o Vale do Amanhecer, em companhia do grupo hippie. A viagem na garupa de uma motocicleta marcou o começo de sua redenção, pois ali ela encontrou amor e compreensão, a aceitação natural, a ausência de críticas e a vivência em meio ao trabalho mediúnico intenso, o que a levou a encontrar uma razão de viver.
Desenvolveu sua mediunidade, entrou em contato espiritual com seus Mentores, abandonou as drogas e, em pouco tempo, transformou-se numa boa moça, saudável física e mentalmente. Ingressou, decididamente, no caminho crístico do amor, da tolerância e da humildade.
Eliete fez sua Iniciação. Voltou para o Rio, mas não quis a companhia dos pais. Arrumou um emprego como balconista, e vive a vida tranqüila de quem sabe direcionar o seu próprio destino.

- É, Neiva, uma história interessante. Só não entendi uma coisa: geralmente, os jovens que aparecem por aqui têm sua desgraça debitada aos traumas de família, pais fracassados, mães desajustadas e coisas assim. Eliete, porém, nasceu num lar feliz, no qual havia amor, padrão de vida e posição elevados na sociedade. Como explicar isso?
- Ausência de um preparo espiritual, Mário, falta de profundidade vivencial. Não se esqueça de que estamos habituados a enfrentar os problemas dos que nos procuram quando existe uma crise, uma eclosão de conflitos. Em nossa preocupação em amainar a angústia, em nossa função de socorristas, não nos ligamos em julgar ou analisar, e, com isso, não vamos às raízes sociais, o que, aliás, não é de nossa competência. Nossa função não é controlar a sociedade, mas, sim, apenas dar amparo aos que nos procuram. O caso de Eliete é o mesmo do de milhares de jovens para os quais as funções do lar são somente de abrigo e proteção. O lar moderno tornou-se apenas isso, embora com muitas e benéficas exceções. É por isso que afirmamos ser a família o maior lugar dos reajustes, onde os espíritos se encontram para cobrar e resgatar suas dívidas espirituais e cármicas. A felicidade no lar tornou-se um padrão abstrato, uma espécie de representação generalizada. Imagine, Mário, um grupo de atores teatrais que fossem obrigados a viver seus papéis vinte e quatro horas por dia, andar na rua e em todos os lugares com suas caracterizações, e você terá uma idéia do Homem moderno. Papéis e mais papéis. No escritório, ele é o chefe; na rua, ele é o transeunte; no volante do carro, ele é o motorista; no clube, ele é o desportista; e em casa, ele é o chefe da família. Na verdade, todos esses papéis escondem seres angustiados, irresolvidos, despersonalizados. O Homem moderno vive a angústia da incerteza e da ausência de resposta para as indagações básica: de onde vem? Para onde vai?
- Neiva, já discutimos isso antes. Vimos que o Mediunismo seria uma solução, mas o simples fato de se falar em Mediunismo já parece fanatismo, superstição. Qual seria a mensagem que iria levar um pouco de lenitivo para tantos milhões de seres humanos? Como poderíamos atingir essas almas sofredoras?
- Mário, Mário! Não se preocupe tanto com isso. Lembre-se de que existe perfeita coordenação nos planos espirituais, e Deus provê a todas as criaturas sua oportunidade. Descrevi um quadro de superficialidade na vida humana, mas o Homem, que está sob a máscara do ator, tem um espírito transcendental a animar sua alma e a exigir o perfeito cumprimento das tarefas cármicas. O próprio caso de Eliete ilustra o que digo. Chegado o momento, as Leis Divinas entraram em ação, e seus pais foram jogados no cumprimento de suas faixas cármicas. Eliete serviu como instrumento, entre a vida que eles levavam, sem dor, sem sofrimento, sem preocupações, e para superação do sofrido quadro atual, eles irão encontrar o caminho de suas realizações espirituais.
- Neiva, será que só pelo sofrimento as criaturas encontram o caminho da realização espiritual?
- Não, Mário, não pelo sofrimento, mas, sim, pela dor!... É preciso saber a diferença entre uma coisa e outra. Aqui, no Vale, padecemos muita dor, não é verdade? Mas você acha que nós sofremos?
- É, pensando bem, é isso mesmo! Eu não me julgo um sofredor, e vejo poucos se queixarem aqui dentro. Entretanto, vivemos mergulhados na dor, sejam as nossas, ou sejam as dos outros. É, isso é muito interessante!
- Mário, há outro ângulo pelo qual esse problema precisa ser examinado, que é o da realização, na faixa da personalidade. Muitas vezes o excesso de bem estar, muita estabilidade e segurança social leva o espírito ao estacionamento, a interromper sua trajetória transcendental. Isso é verdadeiro até no plano físico. O ser excessivamente perfeito, porém animalizado, só consegue emitir na horizontal do plano físico, e só recebe sua alimentação desse plano. Para que a pessoa se espiritualize, receba as inspirações do Céu, é necessário um certo equilíbrio entre a vida física e a espiritual. É por isso que os jejuns foram preconizados em épocas de maior religiosidade. Também, na vida social, um certo tipo de jejum é aconselhável...

POSSESSÃO OBSESSIVA

Havíamos voltado, a Clarividente e eu, de uma atendimento a um desencarne, Desta vez eu tivera a oportunidade de acompanhar, quase visivelmente, os lances da morte nos dois planos. No lado humano, visível à interpretação sensitiva, o fato comum, e desagradavelmente rotineiro, de morte num hospital. Um quarto limpo, branco, higiênico, parentes compungidos, e todos os recursos da Ciência Médica sendo aplicados. Era evidente a inutilidade daqueles esforços e admirável a dedicação dos médicos e enfermeiras. Visível, também, era a atitude, bem humana, de falsa esperança, como se a morte fosse uma anormalidade, um fato que não podia acontecer. Piedosas mentiras circulavam a todo momento.
A mesma situação, vista pelos olhos da Clarividente, se mostrava totalmente diferente, em seu lado espiritual: atividade incansável dos Mentores e Guias, médicos do espaço se revezando junto à paciente, dezenas de espíritos presentes, amigos e inimigos, o equilíbrio de forças invisíveis se alternando a cada instante. A Clarividente centralizava a luta, embora sua atitude exterior fosse tranqüila, e, não fosse ela, esse quadro teria passado despercebido.
Sentia-me consciente da bendita ignorância do ser encarnado, extraordinário mecanismo de proteção. Se os circundantes enxergassem apenas uma pequena parcela da luta em andamento, perderiam o juízo. A cada momento, eu recebia alguma informação confidencial do que se passava, e o fato estranho era a demora no desencarne. A moléstia era câncer, e a paciente havia esgotado seus últimos recursos do plano físico. Por fim, foi assegurado o desencarne nas condições merecidas, e ela deu o último suspiro, com evidente alívio dos circundantes. O pranto habitual foi discreto e condizente com um desencarne num grupo espírita, graças a Deus!...
Logo que me vi a sós com Neiva, fiz-lhe a pergunta que me preocupava:
- Por que, Neiva, essa demora no desenlace? Pelo que pude observar, o espírito da moça que desencarnou parecia estar sendo seguro artificialmente no corpo. É verdade?
- Sim, Mário, foi isso mesmo. Até para mim, como Clarividente, a morte dessa moça foi uma nova experiência. Há um ano que acompanho o caso de Luísa. Quando ela me procurou, seu desencarne já estava programado, mas sua aceitação das premissas da Ciência Espiritual foi tão grande que seus Mentores conseguiram mantê-la encarnada por mais esse ano. Com isso, ela conseguiu terminar os reajustes com sua família espiritual e partir, livre de compromissos assumidos com seus parentes encarnados, graças a Deus!
- Mas, então, Neiva, por que essa complicação de última hora? Você concorda comigo em que este caso foi diferente, não foi?
- Sim, o caso foi diferente do que eu esperava. Na hora, eu estava tão empenhada na luta, que não pude perceber o que aconteceu. Depois, meus Mentores me explicaram que a concentração de esforços no plano encarnado de Luísa, visando o reajuste com seus parentes e espíritos relacionados, consumiu toda a disponibilidade desse ano de trabalho. Com isso, seus cobradores desencarnados mantiveram-se afastados, aguardando o retorno dela para o plano deles. Luísa, porém, integrou-se sob a proteção da Corrente Indiana e seus Mentores conseguiram um recartilhamento do seu caso e, no lugar da vida umbralina, ela foi para as escolas de Mayante. Mas a falange de cobradores, espíritos terríveis de eras remotas, não se conformou e tentou, por todos os meios, levá-la com eles. Daí a luta que se travou e na qual não faltou a caridade para com esses espíritos sedentos de vingança. Felizmente, tudo acabou bem. Enquanto não se conseguia o equilíbrio de forças, ela foi mantida no corpo, fora do alcance da falange. Conseguido o acordo e dominadas as forças negativas, ela foi levada para Mayante. Foi um belo trabalho da Corrente Indiana do Espaço.
         - É, Neiva, isso me faz pensar muito na questão de tempo. Agora, fico imaginando quanto tempo nós perdemos, habitualmente, em nossas vidas, deixando tarefas por concluir.
         - De fato, é muito importante saber isso. A condição de encarnado oferece inúmeras vantagens, que devem ser bem aproveitadas, e isso fica muito claro na parábola dos talentos, que Jesus nos deixou: “Ai daquele que enterra seus talentos...” Geralmente se pensa que a morte simplifica tudo, mas é, exatamente, o oposto. “Ajusta com teus inimigos enquanto estiveres a caminho”, diz o Evangelho, e essa é uma boa pedida!...
E Neiva iniciou uma narrativa:
- Uma ocasião fui chamada para atender a um caso semelhante. Só que a pessoa que ia desencarnar não era gente nossa. Tratava-se de uma senhora de boa posição social e que, também, estava nas vésperas do desencarne, causado por um câncer. Eu relutara em atender ao chamado, que viera num momento totalmente inoportuno, pois tinha um filho doente, com febre alta, e alguns conflitos domésticos em andamento. Meu afastamento de casa iria, certamente, provocar revolta entre os meus. O senhor que veio me buscar era um homem de uns sessenta anos, e bem vestido. Enquanto ele esperava na sala, eu me debatia com o problema de ir ou não atendê-lo, quando Mãe Tildes veio me recomendar que não deixasse de ir, pois o caso iria exigir muita doutrina. Argumentei com ela que eu não era uma Doutrinadora, mas ela insistiu, firme. Tive que ir, mesmo contra a vontade de meu pessoal. Cheguei ao luxuoso apartamento onde estava a mulher, cujo nome era Blanca, e que conservava, ainda, traços de grande beleza, apesar do desfiguramento da moléstia. Ela dormia, sob efeito de forte sedativo. A casa estava cheia de gente, parentes da doente, e eu me sentia um pouco tolhida em meio a tantos estranhos. Parei, indecisa, na entrada, quando um rapaz, de uns dezenove anos, segurou no meu braço e me levou para um canto mais sossegado da sala. Usava barbas e cabelos comprido, característicos dos hippies, e tinha um ar pálido de cansaço.
- Dona Neiva, – disse ele – meu nome é Edu, e agradeço por ter vindo. Estamos todos aflitos, e a situação aqui em casa é a pior possível!...
- É, – disse eu – foi bom seu pai ter ido me buscar.
- Não, Tia Neiva, aquele não era meu pai e, sim, meu tio Manoel que a trouxe. Meu pai é o culpado dessa situação, e foi ele quem “pintou” tudo isso. Meu tio, que é “bacana”, é quem está assumindo a responsabilidade de tudo e foi buscar a senhora.
Nisso, aproximou-se uma moça, com mais ou menos a mesma idade de Edu, e se abraçou com ele, chorando. Ele apresentou-a:
- Esta é Eloísa, a filha da doente.
A moça olhou-me com os olhos cheios de lágrimas, e me disse, entre soluços:
- A senhora é Tia Neiva? Oh! Por favor! Tire essa macumba de minha mãe... O que será de nós, se ela morrer?
Nesse momento, ouvi um grito raivoso, e vi uma outra moça acercar-se de nós, dirigindo-se a Eloísa com voz alterada pelo ódio:
- Muito pior foi o que aconteceu com minha mãe! Com essa história de macumba, sua mãe arrancou o meu pai de perto dela e o pior é que ela foi jogada num hospital, internada como louca. Isso foi o que eles – sua mãe e meu pai – arranjaram com essa história de macumba! Minha pobre mãe presa num hospício como sendo uma doida varrida! Ó, meu Deus! Dona Neiva, meu nome é Marcela, e peço-lhe que nos diga a verdade. Mostre a essa gente o mal que eles fizeram... Ó, meu Deus! Minha pobre mãezinha!
E continuando a gritar, descontrolada, engalfinhou-se com os jovens. Eu, aturdida, procurava apartá-los. O senhor que fora me buscar chegou para me ajudar. A muito custo separamos aquelas criaturas sofridas, que se agarravam e se agrediam, e, depois, Manoel me conduziu a um sofá, perto do quarto da paciente.
- Seu Manoel, – disse eu – essas crianças estão completamente neuróticas!
Ele voltou para tentar acalmar mais um pouco os jovens. Sentada naquele sofá, procurei me reequilibrar e, com o auxílio de Mãe Tildes, fui compondo o quadro daquela sofrida família, percebendo, de início, que o miolo do conflito era a relação existente entre a paciente – Blanca – e o irmão de Manuel, por nome Antone. Há muito que eram amantes, situação que havia causado toda a desgraça que se abatera sobre as duas famílias. O quadro formado era estarrecedor.
Manoel interrompeu minha visão ao me informar que a paciente havia acordado. Entrei no quarto, e Blanca, ao me ver, fez menção de levantar-se, mas as forças lhe faltaram. No seu rosto esmaecido, notavam-se traços da antiga beleza. Os olhos se destacavam, com um brilho ensandecido. Com voz cavernosa, exclamou:
- Tia Neiva! Tia Neiva! Ó, Tia Neiva! Pelo amor de Deus, tire essa macumba de mim... Veja o que fizeram comigo!...
Meu Deus, pensei, vejo o quadro da morte e meu único desejo é o de desmascarar essa mulher! Dominei-me de pronto, e pude perceber porque Mãe Tildes quisera minha presença ali. Sentei-me à cabeceira de Blanca, e lhe disse algumas palavras de conforto. Senti que ela se acalmou e prometi que iria fazer tudo o que pudesse para ajudá-la. Ela se reanimou, o começou, de novo, a balbuciar:
- Tia, Tia, sei que a senhora é vidente e pode ver a porcaria que jogaram em cima de mim!
Enquanto ela falava, os que estavam na sala foram entrando no quarto, com ar de expectativa. Blanca, ao vê-los, aumentou o tom de voz, continuando:
- Sim, Tia, a mãe desses meninos sempre mexeu com macumba, e acabou num hospício por causa disso. Foi ela que fez isso comigo.
Diante da veemência da doente, Marcela fez menção de reagir e eu, percebendo sua intenção, fiz-lhe um sinal para que não falasse. Prometi a todos que cuidaria do problema, que iria estudar melhor a situação, e que voltaria no dia seguinte. Pedi-lhes que me aguardassem reunidos e sem agressões.
Ao sair, pedi a Marcela que fosse comigo à minha casa. Evoquei as forças do Oriente, e deixei todos mais tranqüilos, embora soubesse que estávamos em meio de uma verdadeira guerra, pois, pelos espíritos cobradores presentes naquele ambiente, vi que aquelas pessoas estavam longe das bênçãos de Deus.
Eram seis horas da tarde. O crepúsculo alaranjado de Brasília parecia mais um gigantesco incêndio celestial. Meu coração doía por aquela triste gente.
Manoel levou-me para casa, juntamente com Marcela. Ela e Manoel foram me contando o complexo enredo: Antone era um próspero comerciante em Copacabana, um bairro do Rio de Janeiro. Havia se casado com Kátia, que estava internada no sanatório para doentes mentais. Tinham três filhos: Edu, Marcela e Mara. As relações entre as duas famílias eram de grande amizade. Blanca, muito bonita e irrequieta, se tornou amante de Antone, e largou o marido, de nome Aluízio. Este, totalmente desnorteado, acabou por morrer em um estranho desastre, tendo sido levantada a suspeita de a morte ter sido provocada por Antone. Kátia, desconfiada da infidelidade de Antone, e abatida pela morte de Aluízio, teve seu sistema nervoso abalado e, nesse estado de fraqueza, começou a ser perturbada pelo espírito de Aluízio, que se tornou seu obsessor. Blanca, maldosa e enciumada, dominando completamente Antone, insinuou que Kátia estava mexendo com macumba, o que seria o motivo da sua loucura. Sua capacidade persuasiva era tamanha que todos, inclusive os próprios filhos de Kátia, acreditaram, o que levou Kátia ao triste destino de um hospício.
Com essa vida de irresponsabilidade, as famílias se dispersaram e viviam à mercê das circunstâncias. Edu, Mara e Marcela perambulavam pelas praias cariocas e se tornaram hippies à moda nacional. Blanca, sempre tramando algo, acabou convencendo Antone a se mudar para Brasília, e os três – ela, Antone e Eloísa – passaram a viver juntos.
Quando a moléstia se manifestou em Blanca, Antone, ainda mal adaptado ao comércio de Brasília, começou a gastar muito, usando a fortuna acumulada, chegando à situação atual, que era a pior possível. Ao ficar patenteado o câncer, Blanca entrou em um quadro horrível de sofrimento e revolta. Com sua língua viperina, acusava a todos por sua desdita, e a pobre Kátia, recebendo suas vibrações envenenadas, piorava cada vez mais. Manoel, penalizado de Eloísa, veio para Brasília, e os filhos de Antone vieram logo em seguida. Havia apenas uma semana que estavam reunidos, atraídos pelo invisível reajuste espiritual.
Ao chegar em casa, encontrei meu filho ainda ardendo em febre, e tomei todas as providências necessárias. Sabia que tudo deveria estar bem, pois, no dia seguinte, eu teria que enfrentar a realidade e encaminhar aqueles espíritos atribulados. Quando consegui um pouco de tempo mais tranqüilo, analisei a situação , junto com Mãe Tildes, e a conclusão a que chegamos foi a de que só a morte de Blanca iria dar a oportunidade para o restabelecimento de Kátia. Procurando ver melhor o quadro da pobre mulher, acabei encontrando um quadro paralelo, que mais agravou a situação: Kátia também tivera um amante, um pianista chamado Evandro, que, atualmente, estava à beira da morte, acometido por uma tuberculose fatal. Kátia se apaixonara por ele, numa época em que Antone viajava pela Europa, e ele era o verdadeiro pai de Edu.
No dia seguinte, encaminhei-me para o apartamento de Blanca, sentindo-me como se estivesse indo para uma maloca de marginais. Quem mais sofria era Antone, que se via despojado de sua fortuna e da família. A mais culpada, porém, era Blanca, que enveredara pela tortuosa senda da maledicência, e minha difícil missão era trazer aquele espírito à razão. Encontrei a família toda reunida. Blanca apresentava ligeira melhora, e foi a primeira a falar:
- Tia Neiva, sei que a senhora, com seus poderes, afastou essas macumbas que Kátia jogou em mim. Já não sinto dores. A senhora tem que me curar e fazer com que Antone volte a ser o que era. Não tolero mais o desprezo dele! Tia Neiva, me ajude...
Mobilizei toda a força de amor que pude e, com voz firme, procurei despertar aquele espírito desvairado:
- Blanca, Blanca, acorde para a realidade. Não existe macumba alguma em sua vida, nem Antone a despreza. Volte-se um pouco para dentro de você mesma, e veja a situação em que você e Antone colocaram suas famílias. Quanto mais você culpa a pobre Kátia, mais você se endivida com ela. Lembre-se de que seus dias estão acabando, e você terá que enfrentar sua própria consciência, queira ou não. Não adianta culpar os outros por seus próprios desatinos. Nem Kátia, nem seu falecido marido são culpados pelo seu comportamento. Não queira justificar seus atos pelo procedimento dos outros!
Enquanto falava, eu sentia certa tontura, pois estava carregada de ectoplasma, e só esses fluídos poderiam atingir aquele espírito dementado pelo egoísmo e ciúme.
Nesse ponto interrompi a narrativa de Neiva:
- Não estou percebendo bem onde essa história quer levar. No caso de Eloísa, o quadro era nítido, quer dizer, ela não havia se reajustado com espíritos desencarnados, e esses apareceram, na última hora, para cobrar. Mas, e o caso de Blanca? Está parecendo um drama conjugal comum. Não consigo entender como uma simples infidelidade pode provocar tanta tragédia!
- Mário, Mário! Procure ver as coisas com mais profundidade. Quando os líderes religiosos do passado condenaram o adultério, eles tinham razões mais amplas que o simples contato carnal. O problema não é apenas sexo. Quando um casal ingressa nesse quadro, quaisquer que sejam suas justificativas, eles passam a ver um mundo mental complexo e falso. A mentira se torna a norma de suas vidas. Com a falta do elã afetivo, eles são presas de quadros mentais negativos e se tornam vulneráveis a forças inferiores. Falta respeito, falta afeto, falta sinceridade, e isso tudo leva aos desvios mentais de toda espécie. Como conseqüência, os filhos se afastam do convívio e se tornam descrentes da família. Até certo ponto, essa situação que se cria com a promiscuidade conjugal afeta apenas o plano humano e social. Surgem problemas psicológicos, dificuldades no estudo dos filhos, problemas de saúde, influências na vida profissional e financeira dos responsáveis pela casa e os pequenos escândalos sociais. Até aí, o problema é comum e a sociedade como que se adaptou a essa situação. Os jornais e revistas estão cheios desses acontecimentos e isso parece não afetar muito a existência humana. O verdadeiro problema começa, Mário, é no campo mediúnico e cármico. A displicência mental leva a ligações com espíritos sofredores e possibilita o acesso de obsessores. Desenvolve-se, então, a mediunidade angustiada, com toda a gama de obsessões e doenças, que tão bem nós conhecemos em nosso trabalho. A família se torna joguete do mundo espiritual negativo e o desespero passa a ser a norma de vivência. Esse, Mário, é o quadro com que eu me defrontava na casa de Blanca. Todos passavam por dores profundas, mas não porque houvessem recebido essa ou aquela injustiça do outro, mas, sim, porque estavam saturados de fluídos pesados, ectoplasma deteriorado e assédio de espíritos cobradores. As ligações mentais, com base no ódio, permitiam as possessões mútuas, com toda gama de sofrimentos que esse fenômeno espiritual causa. É por isso que minha principal ação ali não era moral, mas, sim, técnico-mediúnica. Falava em voz alta, para fazer com que meu ectoplasma atingisse cada um. Aos mais afetados, eu procurava falar junto ao rosto, e meu arrazoado visava, principalmente, manter suas mentes num padrão alto. Com isso, eu ia conseguindo abrir as antenas de cada um para a sintonia com seus respetivos Mentores e Guias.
- Essa não entendi muito, Neiva, essa de abrir antenas... Explique melhor!
- Mário, os seres humanos envolvidos na própria problemática da vida, usando apenas a razão ou os sentimentos afetivos, vivendo intensamente a vida de relação, tornam-se, cada vez mais, humanos, mais físicos, mais concretos. Em última análise: eles ficam tão imersos na faixa física que nenhuma influência das faixas superiores consegue atingi-los. A atmosfera em torno deles é tão densa que os Mentores não conseguem fazer chegar às suas mentes saturadas as mensagens adequadas. Eles são fechados às influências espirituais.
- Mas, Neiva, isso continua um pouco obscuro. Nós, aqui no Brasil, vivemos envoltos num clima religioso, em todas as faixas. Praticamente, aqui existem todas as religiões do mundo e é raro o indivíduo que não creia em alguma coisa. Na própria família de Blanca, eu tenho a certeza de que, se perguntassem, todos se afirmariam crentes em Deus e, até mesmo alguns, seriam freqüentadores de algum culto religioso. E essas antenas, Neiva, não estavam servindo?
- Apenas na aparência, Mário. Na verdade, a atitude religiosa é somente uma variação da atitude intelectual, uma elaboração da psique, uma criação da psicologia social, o mesmo que você chama com uma palavra comprida e complicada, como é mesmo?
- Antropomorfismo...
- Exatamente, Mário, é a atitude religiosa antropomórfica. Em vez do ser humano se tornar divino, a divindade se torna humana. Mário, foi bom você frisar esse assunto. Se as pessoas compreenderem isso na sua simplicidade, irão conseguir mais alívio para o seu sofrimento, e a humanidade pode sair dessa falsa situação. Por aí, você irá entender porque se tornou tradição as pessoas só procurarem o Espiritismo, ou outras doutrinas, quando estão com dor, quando estão sofrendo. A dor, o sofrimento, a desilusão, a descrença na solução dos problemas com os meios que a sociedade oferece, enfim, quando o ser humano atinge aquela faixa que antecede os suicídios, ele, então, se dá por vencido e, na sua entrega, enfraquece a resistência e o divino, ou seja, a faixa menos densa, o mundo dos espíritos, consegue acesso a ele. Mas, o importante é que essa mesma faixa, essa mesma receptividade aos planos superiores, pode ser atingida sem ser necessariamente nesse ponto. É por isso que, absurdamente, a gente encontra pessoas mais felizes, mais realizadas, nas camadas mais pobres, mais simples da sociedade. O problema é que, antes de atingir essa faixa, o ser humano compromete-se muito, e às vezes, não consegue mais a solvabilidade necessária.
- Mais um ponto obscuro, Neiva. Como é que se processam esses compromissos?
- Para entender isso é preciso compreender o que se chama de mundo espiritual. Nós, habitualmente, chamamos de espiritual tudo que não é percebido pelos sentidos, o mundo físico, não é verdade? Qualquer fenômeno que não se explica pela razão ou pelo conhecimento científico, é chamado de sobrenatural e, se formos mais supersticiosos, a gente chama de espiritual. Entretanto, poucos desses fenômenos são realmente espirituais. Na verdade, é muito rara uma relação efetiva com o mundo do espírito. O que chamamos de relações com o mundo do espírito são, apenas, relações com o mundo invisível que nos cerca, uma parte do mundo físico que não é palpável, visível ou mensurável. É o mundo onde ficam as psiques dos desencarnados, quer dizer, seres humanos como nós outros, mas que não dispõem de um corpo físico, dos sentidos e do mundo das relações sensoriais, e esse mundo é tão concreto quanto o nosso universo físico e tanto ou mais atuante. A diferença é que não o vemos, embora sintamos seu efeito a todo instante. Numa analogia um pouco precária, nós podemos comparar esse mundo com o mundo dos microorganismos, dos micróbios. Não os vemos, somos pouco conscientes da existência deles, mas, a toda hora, sentimos o efeito deles em nossa vida. Ora, se você não se alimenta, enfraquece sua resistência orgânica, você é imediatamente atacado pelos micróbios, e fica doente, não é verdade? Assim, também, é a relação com o mundo espiritual que nos cerca. É assim que estava a família de Blanca. Estavam doentes e o que lhes levei foi, basicamente, a cura mediúnica, fluídica, ectoplasmática. Fui aliviá-los dos compromissos feitos inconscientemente devido à forma como se comportaram. Sem esse trabalho, Mário, pouco adiantaria minha atuação moral, meus conselhos ou minha Doutrina. Isso é básico em nosso Espiritismo. O Mestre Jesus pouco falava, mas curava muito. Seus apóstolos e seguidores agem da mesma forma. Primeiro, é preciso curar, aliviar. Sem o afastamento dessas nuvens negras, desses fluídos pesados e espíritos sofredores, o ser humano tem suas antenas embotadas, com pouca possibilidade de receber as mensagens de seus Mentores e de seus Guias. É a isso que o Mestre Jesus se referia quando disse que não deveríamos jogar pérolas aos porcos! Não adianta, Mário, você fazer uma bela doutrina, falar de coisas do Céu, se a quem você se dirige estiver saturado. Ele vai, somente, transformar sua mensagem em mais alimento para sua digestão grosseira. É mais uma religião que se transforma em vivência psicológica, mas inócua. É por isso que encontramos pessoas que falam de complicadas filosofias, religiões e iniciações, dando aparência de serem grandes iniciados, mas não passam de pobres seres humanos, que ainda não equacionaram suas vidas.
- Isso tudo é muito complicado, Neiva. Como podemos transmitir essa mensagem, dar às pessoas a capacidade de sintonizar suas antenas, antes que ingressem nos quadros de dor e sofrimento?
- Pela simples advertência quanto à mediunidade. Esta é a coisa mais simples que existe para se entender. Qualquer pessoa, seja culta ou não, pode entender isso, independente de Espiritismo. Afinal, temos que admitir que o Espiritismo não é aceito universalmente, mas isso não nos dá o direito de excluir de seus benefícios o resto da humanidade. Tenho certeza de que, se falarmos em termos de mediunismo como algo natural e inerente a todos os seres humanos, nossa mensagem terá muito mais receptividade e muitas dores serão aliviadas.
         - Quer dizer, Neiva, que qualquer ser humano tem possibilidade de encontrar melhor maneira de viver, ser feliz, realizado, útil, achando que a vida vale a pena ser vivida, na forma como ela foi planejada pelo Criador?
         - Não, Mário, não é bem assim. Ser feliz e realizado não é viver segundo um estereótipo, um padrão estratificado. Ser feliz é viver segundo o fluxo da própria vida de cada um. É viver conforme o padrão único e individualizado de cada ser. Felicidade padronizada é utopia. Cada ser tem que, necessariamente, encontrar seu próprio caminho, sua própria maneira de ser, sua posição exata no conjunto universal. E é esse, exatamente, o ponto focal do contato espiritual com os Mentores e Guias. O ser humano é transitório e seu percurso é limitado. A densidade das leis que regem esse percurso não lhe permite ver o princípio nem o fim. Ele não sabe, na simples qualidade de ser humano, de espírito encarnado, de onde veio e nem para onde vai. Mas seus Mentores e Guias têm a visão mais ampla, não são cerceados pela Lei Densa, têm um maior descortino. Assim, o problema se simplifica. Ao invés de gastarmos nossa energia mental e psíquica na elaboração de complicados esquemas, é muito mais simples receber o esquema pronto de quem sabe. Ora, se aceitarmos a reencarnação, somos obrigados a admitir que aqui estamos segundo um esquema, um plano. Nosso problema é ter acesso a esse esquema e, para isso, temos que sintonizar as antenas espirituais. Com isso, o ser humano não abre mão dos seus privilégios, de sua liberdade, e recebe o mapa de sua vida, o roteiro para esta existência. Quanto a segui-lo, obedecer a esse esquema , isso fica a critério dele. Nada é compulsório, e o livre arbítrio é um dos maiores privilégios do ser humano. Mas é preciso, sempre, distinguir o que é do espírito, da partícula divina individualizada, e o que é da personalidade, da psique, do transitório, do perecível. “Não acumuleis tesouros na Terra...” – o Evangelho é bem claro...
         - É, Neiva, assim acho que posso entender. Chego à conclusão de que nosso problema é de “desconfiômetro”, de tomar cuidado com o mundo ilusório da predominância de nosso ego, daquilo que nós pensamos sermos “nós”. E com respeito a Blanca, como terminou sua ação junto àquela família?
         - Com três visitas, consegui afastar as correntes negativas e restabeleci a normalidade psicológica do grupo. Mostrei a elas que não existiam macumbas e afastei a idéia de que Kátia era a culpada das desditas deles. A concentração do ódio de Blanca em Kátia é que abrira seu corpo para o câncer e causara o desequilíbrio de Kátia. Com a inversão na corrente mental de Blanca, ela recuperou energias e resistiu melhor à dor, quer dizer, passou a sofrer menos. Com o afastamento das nuvens escuras da mente, ela conseguiu a lucidez necessária para reconhecer seu comportamento negativo e se tornou mais receptiva, mais amena, mais compreensiva. Entretanto, o fato concreto de sua moléstia despertou, para ela, a compaixão das pessoas a quem tanto prejudicara. Quando a deixei, ela já estava medicada, atendida pelas moças com todo carinho. Onde havia uma atmosfera de ódio e ressentimentos, passou a haver até um certo amor e mais tolerância. Eloísa sentiu-se livre para se entregar ao amor que sentia por Edu, e já falavam em casamento. Antone, aliviado da pressão em casa, dedicou-se mais aos negócios, e conseguiu deter a onda depressiva. Consegui romper as correntes negativas emitidas contra Kátia, e iniciei um trabalho na Alta Magia para sua recuperação. Um mês depois, Blanca desencarnou, com relativa tranqüilidade, e a família voltou para o Rio de Janeiro. Antes de partir, todos vieram me agradecer. Alguns meses depois, Pai João me levou para assistir a um dos sermões que ele faz nos cemitérios. Na primeira oportunidade, Mário, eu quero lhe descrever como é esse trabalho de Pai João. É a coisa mais triste, porém mais bela do mundo invisível. Naqueles dias, o cemitério da Boa Esperança ainda não estava terminado, e até o ambiente físico era triste. Qual não foi minha surpresa ao encontrar Blanca entre os sofredores presos aos cadáveres! Aí entendi porque Pai João me levara. Blanca não conseguira, ainda, se libertar dos laços de ciúme e ódios... Ao me ver, Blanca me reconheceu e, lembrando de minha ação junto a ela, readquiriu consciência suficiente para aceitar a doutrina e, então, pôde ser removida para as escolas do espaço.

A VIDA NUM CEMITÉRIO

         - Duas coisas, Neiva, sobre as quais pedirei mais esclarecimentos: essa questão dos suicidas e o que se passa nos cemitérios. No caso dos suicidas, tenho um pouco de preocupação com aqueles que nos vão ler. Você não acha que, se justificarmos o suicídio, podemos dar motivos para que as pessoas que antes vacilavam, o façam por isso?
- Não, Mário, isso não me preocupa nem um pouco. Nas estórias que estamos relatando, estamos frisando muito bem os aspectos positivos da vida e abrindo possibilidades a todos, mesmo que não aceitem nossa Doutrina. As pessoas que lerem os casos que estamos contando verão que o verdadeiro suicídio é a morte planejada, deliberada. Se uma pessoa é consciente das implicações da vida cármica e, assim mesmo, se mata, esse é, realmente, um suicida. O que vai se apresentar a ele, depois disso, é a mesma situação que deixou na vida, porém, com muito mais complicações. Definitivamente, não paga a pena suicidar-se. Mas, o que me preocupa, realmente, nesse assunto, é a atitude dos vivos com relação aos suicidas, ou como tal considerados. Isso porque o espírito, após o desencarne, depende muito dos que ficam. Se as idéias e conceitos que fazemos do morto forem positivas, ou, pelo menos, isentos de julgamento, ele se despreocupa muito mais dos que aqui deixou e pode seguir seu destino com maior tranqüilidade. Isso sem falar na questão ectoplasmática, tão preciosa para o recém desencarnado.
- É, isso faz sentido. E quanto aos cemitérios? Tradicionalmente a gente considera o cemitério como um lugar de paz, de tranqüilidade. Ele é assim, realmente?
- Não! A paz que ali existe é somente física, pois os defuntos são, apenas, matéria em decomposição, e nada podem fazer fisicamente. Mas, em contrapartida, na parte psico-espiritual, a coisa é bem diferente. Deixe-me contar um caso que irá elucidar bem as duas questões. Certa vez fui procurada por um senhor, de nome Marcondes, que soubera a meu respeito por intermédio de um deputado federal. Marcondes morava em São Paulo, e pertencia a tradicional família católica, sendo membro ativo da Confraria Vicentina. O motivo de sua visita eram conflitos conjugais e problemas comerciais. Sua situação era a pior possível. Em sua vida conjugal, havia sério problema pela interferência de um seu secretário, chamado Waldo, aparentado de sua esposa. Registrei o nome dela – Armanda – e de uma filha de 17 anos. De pronto, verifiquei que a base do desajuste era a presença de Waldo e um carma complexo de toda a família. Vi, também, que a alimentação mediúnica do conflito se processava, principalmente, através de Marcondes.
- Mas, Neiva – interrompi – mediunidade num católico praticante?
- Sim, Mário, você não está sempre afirmando que a mediunidade independe da situação da pessoa?
- Bem, é lógico... Apenas estranhei um pouco, porque os católicos têm uma posição bem definida de antagonismo ao Espiritismo.
- Ao Espiritismo, Mário, mas não ao Mediunismo. A idéia do médium, isto é, do intermediário, também é fundamental no Catolicismo, só que é apresentada de outras formas. Bem, não quero me aprofundar nessa análise, em face do respeito que tenho, não só pelos católicos, mas por todas as religiões, e não nos compete julgar qualquer outra linha ou credo. Mas, o caso de Marcondes estava nítido. Cumpridor de seus deveres religiosos, desde mocinho destacou-se como congregado mariano e, na prática constante de sua doutrina, desenvolveu sua mediunidade. Sempre procurando respeitar sua posição, com muito custo consegui equilibrar seu quadro familiar e sua posição comercial. Pedi que ele trouxesse Waldo até Brasília, e esclareci os dois sobre a situação. Com isso, pude retirar a possessão que existia, e ambos se foram em paz. Depois disso, periodicamente, eu recebia algumas flores, com um cartãozinho de um deles, me cumprimentando. Depois de um ano desse contato com eles, cessaram as flores e as notícias.
         - E você não ficou preocupada, não se agastou com isso?
         - Não. Já estou acostumada com isso. Como disse Chico Xavier, sou apenas um burrinho que transporta o Bem e recebe más notícias. O fato é que não recebi mais qualquer notícia deles. Algum tempo depois, Pai João me convocou para ver um “tutelado” meu. É a forma como ele se refere aos nossos clientes. Desprendi-me do corpo e tratei de acompanhá-lo. Eram cerca de três horas da madrugada quando chegamos a um lindo cemitério, cheio de capelas e estátuas ornamentais. Senti medo, e fiz menção de retornar ao meu corpo. Pai João me segurou e me repreendeu, dizendo: “Filha, filha, tenha cuidado e contenha-se. Lembre-se de que o seu amor fraternal a sustenta e a livra de qualquer mal! Não se esqueça de que o medo é um grande mal...” Nisso, surgiu um homem muito alto, vestido de preto e com uma camisa muito branca. Dei um grito, assustada, pois o semblante do homem denotava, claramente, que ele havia saído de uma cova. Pai João sorriu e me segurou, dizendo: “Filha, este cemitério é em São Paulo, e aqui estão enterrados defuntos que pertenciam a diversas religiões.” Não entendi bem porque aquela referência às religiões. Mais calma, fiquei observando o homem de preto. Ele gesticulava, como se estivesse falando em um comício, e seu tom era de protesto e indignação, como se não soubesse o que estava fazendo ali. Outros espíritos se reuniram e a impressão que eu tinha era mesmo de um comício. Em dado momento, o homem de preto se calou, e um outro homem se destacou pelos gritos que dava, invocando Nossa Senhora da Conceição e invectivando uma figura encapuçada, que percebi ser um frade, que se encolhia todo ao ouvir as coisas que lhe eram ditas pelo tal homem. Admirada pela cena, chamei a atenção de Pai João: “Olha, Pai João, veja como ele chama por Nossa Senhora! E aquele frade? Pobre homem. Tão simples, um sacerdote, recebendo uma humilhação como essa!
         - É verdade, minha filha, esse frade é um grande espírito. Aliás, um sacerdote é, sempre, um grande espírito. Feliz do homem que se desprende dos bens materiais para se dedicar a uma missão. Quando à invocação de Nossa Senhora é perfeitamente natural, de acordo com a crença desse homem. E pode ter certeza, minha filha, de que ele será atendido na sua invocação.
         - E por que, Pai João, esse homem está com tanta raiva do frade?
         - Eles estão num reajuste, minha filha, reajuste esse que não foi feito quando ambos estavam encarnados. O homem que está gritando com o frade é um suicida. Era um político de muito destaque, e esse frade era seu filho. Seu sonho de político era o de que seu filho seguisse a mesma carreira. Mas não soube conduzi-lo e, em certo momento, o rapaz abandonou a família e se recolheu a um convento. A frustração do pai foi muito grande, e a isso se somaram outros desgostos, que levaram o político ao suicídio. Apesar do gesto dramático, ele não morreu na hora. O filho, já um sacerdote, foi para a cabeceira do pai e, contrariando as normas de sua religião, deu a absolvição, a extrema unção ao pai.
         - Mas não podia, Pai João? Por que um filho não pode dar absolvição a um pai?
         - Nesse caso, não, minha filha, porque ele era um suicida comprovado e a Igreja não permite a ministração de sacramentos a pessoas que se suicidam, nem mesmo seu enterro num cemitério consagrado.
         - Mas, Pai João, – objetei – como um espírito, que vem para se reajustar na Terra, como no caso presente, com seu próprio pai, abandona a família e, portanto, a sua obrigação cármica, o seu reajuste, se refugia num convento e, ainda assim, pode ter a santidade para dar uma absolvição?

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